quinta-feira, 30 de julho de 2020

Democracia e futebol: quem e o que está por trás do movimento

Gol pela democracia: Sócrates em campo em 1982, época da Democracia Corinthiana (Foto: Domicio Pinheiro/Estadão)








Gol pela democracia: Sócrates em campo em 1982, época da Democracia Corinthiana (Foto: Domicio Pinheiro/Estadão)


  • MARCELO DAMATO
 ATUALIZADO EM 

Em meio à pandemia, apoiadores de Jair Bolsonaro foram às ruas para atacar o Congresso, o STF e a imprensa. Em reação, torcedores de futebol, em sua maioria membros das torcidas organizadas, se manifestaram em defesa da democracia

Fonte: GQ


Do outro lado, silêncio nas ruas. Vozes, só nas redes sociais. Barulho, só nos panelaços dos prédios de classe média. Ninguém queria quebrar o isolamento social para não agravar a crise da covid-19, mas no fim de maio a cena mudou. Surgiram protestos em defesa da democracia. Começaram em São Paulo e logo se espalharam por todo o Brasil, em especial nas capitais. Mas esses protestos não reuniam o público tradicional das manifestações: estudantes, funcionários públicos, políticos, artistas, enfim, a classe média. Também não era o pessoal do panelaço, do alto dos prédios. Quem comandava o ato nas ruas eram torcedores, muitos deles com camisas de torcidas organizadas. Onde o futebol era mais forte, o protesto era mais barulhento também.



CPUBLICIDADE
As torcidas organizadas logo divulgaram que não apoiavam (nem reprovavam) os atos, dizendo que se tratavam de decisões individuais de seus associados, mas muitas delas reuniram alguns diretores das organizações – como Emerson Osasco, da Gaviões, que teve o primeiro grupo nas ruas. Emerson ficou famoso, após aparecer em um protesto, por ter sido demitido de uma empresa de programação no dia seguinte e, imediatamente, ter recebido várias ofertas de trabalho, melhores que a anterior.
Gol pela democracia: Em manifestação na Av. Paulista pela democracia, no mês de junho, torcedor corinthiano se une a grupo de palmeirenses (Foto: Caio Guatelli)

Gol pela democracia: Em manifestação na Av. Paulista pela democracia, no mês de junho, torcedor corinthiano se une a grupo de palmeirenses (Foto: Caio Guatelli)

Outras diferenças mais visíveis entre as manifestações de esquerda tradicionais – ligadas a movimentos estudantis – e essas, ligadas aos torcedores, está na idade – que diminuiu bastante, a ponto de ser raro ver alguém com 40 anos – e nas cores usadas. O vermelho, protagonista absoluto de filiados do PT, PCdoB, PSOL e outros partidos de inspiração marxista, foi substituído pelas cores dos clubes como o negro, do Corinthians e Santos, o verde do Palmeiras, o vermelho e preto de Flamengo, Vitória e Sport, e também pelas cores da bandeira brasileira.

Na manifestação em Brasília, o Somos Democracia – o grupo mais organizado e o que ganhou maior projeção – reforçou o uso das cores amarelo e azul.

A mudança tem dois motivos: um tem a ver com visão de mundo. Muitos dos torcedores-ativistas, mesmo se considerando de esquerda, não têm grande simpatia por comunismo, socialismo, nem ligação com partidos políticos ou movimento estudantil. E o outro é estratégico, para combater um mantra dos bolsonaristas, “minha pátria nunca será vermelha”, que vende a ideia de que eles são os patriotas.

Esses torcedores, nem todos de esquerda, estão em geral fora dessa discussão. Seu ponto é a defesa da democracia e de bandeiras específicas, como o combate ao racismo, à violência policial – no que se aproximam dos protestos contra o assassinato do negro norte-americano George Floyd por um policial branco, em maio – e à discriminação e violência contra as mulheres.

O principal protagonista dos protestos são os corinthianos, em especial a Gaviões. A torcida tem décadas de história em protestos em favor da democracia, desde sua criação no final dos anos 1960. “A Gaviões surgiu para combater duas ditaduras: a do Brasil e a que existia no clube. É uma torcida em que a defesa da democracia está até no estatuto”, afirma Danilo Pássaro, maior líder do Somos Democracia, o maior de todos os movimentos de torcedores e o único existente em vários Estados e sem fãs de um clube só. “Somos mais de mil, mas o diretivo é formado só por corinthianos”, acrescenta.

Gol pela democracia: Torcedores em manifestação pela democracia na Av. Paulista, no dia 31 de maio (Foto: Marlene Bergamos/Folhapress)

Gol pela democracia: Torcedores em manifestação pela democracia na Av. Paulista, no dia 31 de maio (Foto: Marlene Bergamos/Folhapress)

A Gaviões de fato tem uma longa história nesse caminho. Surgiu criada por estudantes universitários que faziam oposição ao então presidente do clube e ao regime militar. Mais tarde, nos anos 1980, abraçou a Democracia Corinthiana, movimento de jogadores que passou a exigir maior participação nas decisões do clube e entrou de cabeça no Movimento das Diretas Já, que em 1984 tentou – mas não conseguiu – fazer com que o Congresso aprovasse o voto direto para escolher o presidente da República a ser eleito em 1985. A grande inspiração da Gaviões na época era Sócrates, craque do time e da seleção, e o mais famoso jogador com posicionamento político da história do futebol brasileiro.

Ao longo das décadas seguintes, as torcidas se despolitizaram e focaram na rivalidade. Foram épocas de grandes brigas. O clima ficou tão ruim que o Ministério Público proibiu bandeiras e instrumentos musicais – usados como armas – e depois passou a exigir que nos clássicos a torcida visitante fosse proibida de entrar.

Nos protestos de 2013, as torcidas voltaram à política, mas foram pouco notadas e estavam dos dois lados. Porém, a partir dali começaram a surgir grupos de torcedores que se denominavam antifascistas, os antifas – ou antifás, como é pronunciado em parte do Brasil.

Além do Somos Democracia, um dos grupos mais proeminentes é justamente o da torcida rival do Corinthians. O Palestra Sinistro, associação de vários grupos de esquerda palmeirenses, chegou a colocar 150 pessoas em uma manifestação pela democracia.

Gabriel Santoro, um dos líderes do grupo, afirma que a associação do clube com o fascismo – nos anos 1930 muitos sócios de fato apoiavam o conterrâneo italiano Benito Mussolini – fez surgir um movimento antifascista. “Quanto mais forte a ameaça, mais forte é a reação. Nós não aceitamos essa identificação do Palmeiras com a direita, com o fascismo”, diz Santoro, morador da Vila Ré, bairro da Zona Leste de São Paulo e maior reduto de corinthianos da cidade.

O modelo se repete. Grupos de torcedores com visão de esquerda ligados a uma organizada formam um coletivo para discutir os problemas sociais do país e protestar em defesa da democracia.

Em Salvador, grupos dentro da torcida Os Imbatíveis, a maior do Vitória, se reúnem todos os meses em “rodas de conversa”, segundo a expressão de Bete Dantas, uma das porta-vozes do movimento, para discutir temas políticos e sociais. A assistente social, criada na periferia de Salvador, resume em uma frase o alcance do coletivo de torcedores. “Não existe nenhum movimento social que tem o alcance da torcida. Temos representantes em todos os bairros da capital e em praticamente todas as cidades do Estado.”

Não é a primeira vez que as torcidas participam de protestos. Em 2013, nas manifestações que começaram com uma reivindicação de passe livre e depois se alastraram, as torcidas estavam em pelo menos um lado. “Naqueles protestos, quando a polícia veio com agressões, o pessoal da esquerda tradicional recuou e nós, que já estamos acostumados com os enfrentamentos contra a polícia, fomos para a linha de frente segurar um pouco as coisas”, lembra Dantas.

Aqueles atos também serviram de lição. “Daquela vez, conseguiram roubar o movimento e transformá-lo em algo totalmente diferente. Desta vez, nós não vamos deixar. E, se virmos que podemos ser manipulados de novo, vamos sair fora”, alerta Santoro. O líder antifascista palmeirense se referiu a como os atos desencadearam em protestos contra o PT e Dilma Rousseff, dando início a um movimento que culminou no impeachment da presidenta, na explosão da rejeição ao PT e à esquerda em geral e, por fim, à eleição de Jair Bolsonaro.

Também toca em um ponto sensível do movimento atual: em São Paulo e na maioria das capitais, não há união entre as torcidas. Na capital paulista, a participação de líderes políticos de esquerda, como Gleisi Hoffmann, do PT, e Guilherme Boulos, do PSOL, na organização de alguns atos, provocou a rejeição de outros torcedores que veem “objetivos políticos”. De fato, em um dos eventos, Hoffmann usou uma camisa da Gaviões.

Entretanto, o maior motivo de desconfiança é a história de rivalidade. Ao longo das últimas décadas, as torcidas construíram um longo histórico de conflitos, e uma das formas de ganhar prestígio dentro delas é justamente mostrar coragem nas brigas contra os rivais. “Sentar para dialogar com o rival é um tabu”, diz Dantas, se referindo especificamente à rixa entre Os Imbatíveis e a Bamor, do Bahia.

Por mais que haja conversas iniciais, quase todas acabam diante de uma situação resumida por um torcedor que pediu para não ser identificado. “Quem vai querer sentar para conversar com alguém que matou um amigo seu?”

Mesmo nos atos, o clima não é sempre pacífico. Em protestos na Av. Paulista, palmeirenses e corinthianos trocaram escaramuças. Em outros estados, cada torcida faz seu ato, de forma separada, mesmo que ocupando quase o mesmo local.

Enquanto esta reportagem era produzida, o racha se tornou mais agudo em São Paulo. Contrariados com a pressão do Somos Democracia para que o PCO (Partido da Causa Operária), um minúsculo agrupamento de extrema-esquerda, não levasse suas bandeiras para o protesto do último dia 28, o Palestra Sinistro decidiu abandonar as ruas para não ter de ficar ao lado do grupo de corinthianos.


Torcedores do ‘Trio de Ferro’ se unem em novo protesto contra o governo Bolsonaro | Porém.netCuritiba, tem as torcidas do MOC-Movimento Organizado Coritibano, Coxacomunas (Do Coritiba) Atleticanhatos e CAP Antifas (Do Athético) e Gralha Marx (Do Paraná Clube)

Em Curitiba, em contrapartida, o movimento é inverso. Torcedores esquerdistas de Athlético, Coritiba e Paraná, já fizeram um ato em conjunto e devem fazer outro ainda em julho, se a epidemia não se agravar na cidade. Uma das organizadoras é Diovana Andrade, ex-filiada à Império alviverde, do Coritiba, e atual diretora do Somos Democracia na capital paranaense. “Aqui todo mundo está junto. A rivalidade fica mais dentro de campo mesmo”, explica a torcedora, que na vida profissional é uma promotora de eventos - quase sem clientes atualmente.

Com tantas diferenças locais, a criação de uma organização nacional para os atos ainda é um sonho distante. Apenas o Somos Democracia tem alcance maior, mas ainda enfrenta resistência.

Mas esses torcedores mostram que não têm pressa. Organizando atos para fim de julho, agosto e até setembro, estão se preparando para uma batalha longa. E deixam claro que os atos só vão chegar ao seu potencial quando passar a pandemia, e todos poderão ir para a rua sem medo de levar o coronavírus para dentro de suas casas.

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