sexta-feira, 31 de julho de 2015

Anotações sobre marxismo e classes sociais (I)

José Carlos Ruy *

A pesquisa e o debate entre os marxistas sobre as classes sociais foram marcados ao longo do século 20 por particularidades que condicionaram as teses defendidas e o próprio resultado da investigação.


Uma das dificuldades mais frequentemente alegadas decorre de que nem Marx nem Engels deixaram uma descrição das classes sociais. O mais forte sinal desta “deficiência” seria o fato de Marx ter deixado inconcluso O Capital, parando justamente no capítulo 52, intitulado “As classes”, com escassas duas páginas voltadas a uma apresentação inicial e esquemática do assunto. E que inclui a pergunta fatal: o “que é uma classe?” (Marx: 1978).

Seria possível, a partir do fato de que Marx não ter tido tempo para concluir sua obra principal. supor que ele não tivesse uma teoria das classes social?

A resposta, claramente, é um não que se apoia, inicialmente, nos próprios seis exíguos parágrafos finais de O Capital (nas traduções brasileira e francesa, e cinco na espanhola e inglesa).

Segundo seu estilo de exposição, Marx inicia apresentando a complexidade do problema. Parte das bases materiais mais visíveis que definem as três classes fundamentais do capitalismo (suas fontes de renda: o salário e o proletariado; o lucro e a burguesia; a renda da terra e os latifundiários).

Mas imediatamente introduz a questão de outros grupos sociais que não se enquadram claramente nesse esquema. E adverte, neste texto curto (e inicial), que é somente “à primeira vista” que a classe social pode ser identificada a partir de suas fontes de renda. Alude aos médicos e aos funcionários que, sob aquele ponto de vista, também formariam (e Marx usa o verbo no condicional) duas classes.

A apresentação feita por Marx no final de O Capital se ampara em suas anotações (mais tarde publicadas sob o título Teorias da Mais Valia) nas quais a análise, embora em esboço, é mais desenvolvida.

Uma compreensão mais aguda da complexidade da visão de Marx sobre as classes sociais exige a leitura do último capítulo de O Capital juntamente com aquelas anotações preparatórias. Um bom guia para esta leitura pode ser encontrado no capítulo 2 do livro Gênese e estrutura de O Capital, de Roman Rosdolsky, na seção intitulada “As três classes fundamentais” (Rosdolsky, 2001).

E pode-se concluir com o escritor soviético S. N. Nadel que os fundadores do marxismo “criaram uma sólida base para o estudo das classes das estruturas sociais da sociedade, distinguindo como o fator mais importante e determinante, entre as relações complexas e emaranhadas entre as pessoas, a produção ou as relações econômicas” (Nadel, 1982).

É certo que uma teoria envolve a descrição do fenômeno analisado. Mas é preciso ressaltar que esta descrição é feita sempre a partir de um princípio explicativo mais geral e muitas vezes amplamente conhecido e estabelecido. Este princípio explicativo não é um conceito ou uma categoria mas um fundamento em que se amparam o conjunto da análise e da explicação. Não é um fundamento arbitrário, formulado de maneira cerebral e à margem do mundo real. Ao contrário, é obtido de forma abstrata pela análise daquela realidade e suas contradições e pode ser entendido como o fundamento comum e mais geral que permite a elaboração de recortes significativos a partir das características próprias e particulares daquela realidade. Ele é tão geral que muitas vezes não precisa nem mesmo ser mencionado, como fora percebido já por Aristóteles que, na Retórica, escreveu que quando uma premissa é bem conhecida “nem sequer é necessário enuncia-la; pois o próprio ouvinte a supre” (Aristóteles: 2005).

Em relação às classes sociais, Marx e Engels e, depois deles, Lênin insistiram num conjunto de aspectos necessários para compreendê-las no interior de um modo de produção - aspectos que antecedem a descrição da maneira historicamente determinada como as classes sociais estão organizadas e que, particularizando-as, permitem a identificação do traço mais geral que as determina dentro de um dado modo de produção (no caso, o capitalista) e abrem caminho para a elaboração de uma teoria das classes sociais adequada ao momento histórico particular focado por aquela análise.

O risco, numa elaboração que desconheça isto que chamo aqui de princípio explicativo, é incorrer no formalismo de uma mera descrição, que compromete ou afeta a explicação e a compreensão mais profunda do fenômeno analisado, examinando-o apenas em sua aparência. É preciso lembrar, como Marx frisou emO Capital, que se houvesse coincidência entre essência e aparência toda ciência seria desnecessária. E, a partir disto, concluir que o entendimento mais profundo precisa ir além da aparência e compreender os fundamentos da realidade examinada.

Entre os aspectos fundamentais para uma elaboração teórica marxista sobre as classes sociais destacam-se a relação com os meios de produção e seu controle, a consciência de classe e a luta de classe, o avanço tecnológico e a divisão do trabalho.

O ponto inicial e fundamental é a questão do controle dos meios e fatores da produção. No modo de produção capitalista, as máquinas, instrumentos, instalações e matérias primas são propriedade da burguesia que, para fazê-los funcionar precisa encontrar pessoas que aceitem a tarefa de usar sua força de trabalho, seu trabalho vivo, para - usando uma figura apreciada por Marx - despertar do reino dos mortos o trabalho cristalizado nas coisas que compõem o capital e criar, com essa ação, riqueza nova. São pessoas que, destituídas de toda propriedade, detém apenas sua força de trabalho sendo assim obrigadas, para obter seus meios de vida, a vender essa força de trabalho para a burguesia, para o detentor do capital.

O princípio explicativo que transpira nos escritos de Marx e Engels sobre classes e relações de classes no modo de produção capitalista foi exposto por Engels numa nota para a edição inglesa de 1888 do Manifesto do Partido Comunista: "Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social e empregadores de trabalho assalariado. Por proletariado entendemos a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de trabalho para poderem sobreviver“ (Marx e Engels, 1987).

Referências

Aristóteles. Retórica. Lisboa. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa / Imprensa Nacional - Casa da Moeda. 2005.

Marx, Karl. El capital - crítica de la economia política. Livro III. México DF, Fondo de Cultura Económica, 1978.

Marx, Karl. Teorias sobre la plus-valia. Vol. I. México DF, Fondo de Cultura Econômica, 1980.

Marx, Karl, e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Moscou, Edições Progresso, 1987.

Nadel, S. N. Contemporary capitalism and the middle classes. Moscou, Progress Publishers, 1982.

Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro, Editora Contraponto/Editora UERJ, 2001

(Continua)
* Jornalista, editor da Classe Operária, membro da Comissão Nacional de Comunicação e do Comitê Central do PCdoB; é da Comissão Editorial da revista Princípios

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Brasil no mês do 'cachorro louco'


Por Guilherme Santos Mello, no site Brasil Debate:

O mês de agosto é popularmente conhecido como o “mês do cachorro louco”. Apesar de a alcunha estar ligada ao fato de o mês de agosto registrar uma maior quantidade de cadelas no período fértil (o que deixaria os machos “loucos” atrás delas), é fato que diversos eventos políticos marcantes tiveram lugar neste fatídico mês: Desde o início da primeira grande guerra e a ascensão de Hitler ao cargo de Fuhrer, no âmbito internacional, até o suicídio de Getúlio Vargas, a morte de JK e a deposição de Collor, na política brasileira.

Efetivamente, para a política nacional, o mês de agosto de 2015 será um teste de fogo, com grandes obstáculos a serem superados pelos seus principais atores.

Em primeiro lugar, é o mês em que devem ocorrer as primeiras denúncias políticas da Operação Lava Jato, que devem abarcar políticos de vários partidos e cargos, atingindo particularmente o presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e o senador Fernando Collor de Mello, podendo também alcançar nomes como o do presidente do Senado Renan Calheiros.

A incerteza acerca dos denunciados tem criado um cenário de “salve-se quem puder”, onde figuras personalistas e raivosas como Cunha tendem a ganhar simpatia dos possíveis denunciados.

Em segundo lugar, porque é o mês para o qual está marcada uma manifestação contra o governo Dilma, defendendo o impedimento da presidenta. Esta manifestação, apesar de ser apenas mais uma dentre as variadas que já foram tentadas, deve receber atenção especial da imprensa por estar sendo protagonizada pelo principal partido oposicionista, o PSDB, que utilizará seu tempo de televisão para convocar a população às ruas em defesa do golpe.

Apesar de várias vozes dentro do partido criticarem tal iniciativa, o senador Aécio Neves, em sua saga de negação da derrota eleitoral, levará seu partido a abraçar as forças golpistas que se fazem presentes no atual cenário político nacional.

Por fim, o mês de agosto marcará o retorno do Congresso Nacional às atividades, com uma série de “pautas bomba” para o governo: desde a aprovação de CPIs que devem servir de palanque para adversários proselitistas (como é o caso da CPI do BNDES), até o possível encaminhamento de pedidos infundados de impeachment, insuflados pela baixa popularidade da presidenta e pelas eventuais manifestações de rua.

Além disso, o governo enfrentará duras batalhas legislativas, tanto para aprovação de medidas de seu “pacote fiscal”, quanto pela aprovação da redução da meta fiscal, que, caso não aprovada, poderá levar o governo a ter que recorrer a manobras fiscais condenadas nos últimos anos.

Finalmente, o TCU e o TSE devem julgar as contas do governo e da campanha da presidenta Dilma, respectivamente, possibilitando o surgimento de mais munição para os defensores do golpe.

Do ponto de vista da economia, o mês de agosto deve marcar o pior momento da recessão, com a divulgação de dados negativos de junho e julho, particularmente no que diz respeito ao emprego e a atividade.

A crise política provocada pela Lava Jato, em conjunto com os efeitos contracionistas da política econômica atual, criaram um cenário de “crise orgânica” no capitalismo brasileiro, uma combinação de crise política e econômica que provoca fraturas sociais e impede o avanço desassombrado do processo de acumulação.

Ao invés de reverter a tendência de deterioração da confiança dos empresários e consumidores, as medidas de superação da “crise fiscal” aprofundaram as problemas que originaram o discurso em defesa do “ajuste”, colocando o país numa espiral contracionista de difícil superação.

Apesar dos riscos que agosto trará e do cenário negativo aqui desenhado, é possível que a crise traga consigo oportunidades, para se valer de outra máxima da sabedoria popular. Caso o governo consiga sair razoavelmente ileso das denúncias da Lava Jato e dos julgamentos de suas contas, é possível que o clima político saia da total incerteza que existe hoje para um campo mais definido, no qual se saberá com maior clareza quem estará fortalecido e enfraquecido.

O eventual enfraquecimento e até afastamento do presidente da Câmara poderá destensionar as relações entre Executivo e Legislativo, facilitando a aprovação de projetos de interesse do Planalto e reduzindo o risco de avanço dos pedidos infundados de impeachment.

Por fim, a comprovação de que a estratégia de ajuste fiscal e monetário, da maneira que está sendo encaminhada, não traz consigo nenhum elemento capaz de dinamizar a economia brasileira e resolver os problemas que se propõem, pode se mostrar preponderante para o governo analisar estratégias alternativas que se colocam e colocarão à disposição da presidenta.

Devemos esperar algum alívio do setor externo (dada a desvalorização cambial) e uma gradual retomada da confiança dos consumidores, devido à desaceleração da inflação no segundo semestre. Estes elementos, somados a uma mudança na postura do governo na política econômica e ao arrefecimento da crise política, serão decisivos para garantir a retomada do crescimento econômico nacional em um futuro não muito distante.

Em um cenário tão conturbado quanto este que se aproxima, a reorganização da base política do governo passa necessariamente pela sinalização de mudanças nos rumos da estratégia de governo, que viabilizem a reconciliação do governo petista com suas bases de sustentação social.

Insistir na estratégia atual de promover concessões aos setores oposicionistas e com inclinações golpistas não será suficiente para criar o cenário de estabilidade política necessária para a retomada do crescimento econômico.

Por que Lula é tão perseguido?


Por Paulo Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:

O que Lula fez para merecer uma perseguição tão vergonhosa da imprensa?

Todos sabemos, ou devíamos saber. Ele colocou a desigualdade na agenda nacional, um anátema para os bilionários donos da mídia.

Mas vamos abordar o caso por outro ângulo.

O que Lula não fez para sofrer caçada tão impiedosa?

Essa é fácil.

Ele não tratou com a devida importância a questão da regulação da mídia.

A posteridade discutirá se ele acertou, ao evitar uma encrenca, ou se errou, ao não enfrentá-la.

Pessoalmente, acho que errou.

Todas as sociedades avançadas regulam sua mídia, como todos os demais setores econômicos.

A imprensa não está acima da lei, esta é a lógica, embora no Brasil os donos de jornais se comportem como se estivessem.

Mídia não é beneficência, é negócio, e como tal tem que se tratada. Veja as fortunas dos proprietários das empresas jornalísticas.

Os porta-vozes dos barões alegam que regular é censurar, mas quem acredita nisso acredita em tudo, como disse Wellington.

Regular é colocar ordem.

A Inglaterra, nestes dias, está na fase final de uma reforma nas regras da imprensa.

Um dos pontos centrais, nas mudanças, é inspirado na legislação da Dinamarca.

Quando os jornais dinamarqueses cometem um erro contra alguém, são obrigados a publicar a correção no mesmo lugar em que deram a notícia equivocada.

Na primeira página, se foi assim.

Este tipo de coisa tem duas virtudes essenciais.

A primeira é que a sociedade fica mais protegida do poder destrutivo da mídia. E a segunda, não menos relevante, é que a imprensa é forçada a ser mais precisa na publicação de suas matérias.

Precisão é tudo numa publicação. Joseph Pulitzer, talvez o maior jornalista da história, exigia de sua equipe precisão, precisão e ainda precisão.

O ambiente de relaxamento de regras em que vive a imprensa brasileira estimula a produção em série de erros – sobretudo, é claro, contra inimigos como Lula.

Num caso histórico, a Veja publicou um dossiê – que depois se comprovou barbaramente fajuto – com contas no exterior de líderes petistas, a começar por Lula.

O argumento da revista é inacreditável para quem leva a sério jornalismo: “Não conseguimos provar e nem desmentir.”

Por muito menos que isso, qualquer revista estaria morta em países em que não há leniência corrosiva para a mídia, como os Estados Unidos ou a Inglaterra.

Ainda no campo do espaço para retratações, um dia será reconhecido como escárnio ao público o procedimento da Folha.

A Folha assassina uma reputação na manchete (Dirceu é uma vítima contumaz) e depois corrige seu erro num rodapé que ninguém lê, a infame seção “Erramos”.

Lula não avançou, em seus oito anos, na questão das regras para a imprensa.

Hoje, ele paga o preço disso.

Se o Globo, para ficar num exemplo, tivesse que publicar uma retratação no mesmo lugar em que cometeu um erro, dificilmente teria dado como “secreta” uma reunião de Lula que o próprio jornal noticiou, poucos anos atrás.

Lava-Jato em nome de Deus


http://pigimprensagolpista.blogspot.com.br/
Da coluna "Notas Vermelhas", no siteVermelho:

Quem nos relata o ocorrido é o colunista do jornal Folha de S. Paulo, Bernardo Mello Franco, em texto publicado na edição desta terça-feira (28). Bernardo informa que o procurador da República Deltan Dallagnol, destacado membro da Operação Lava Jato, esteve nesta segunda-feira (27) em uma igreja Batista na Tijuca, Rio de Janeiro. Lá fez uma espécie de sermão onde revela que está participando de uma missão sagrada, conduzida por forças superiores (e não estamos falando da PGU).

Deltan disse crer que Deus colabora com a Lava Jato, e afirmou: “Dentro da minha cosmovisão cristã, eu acredito que existe uma janela de oportunidade que Deus está dando para mudanças”. Deixando claro a que mudança se refere, Deltan pediu aos “irmãos” que entrem na página do movimento “Mude – Chega de corrupção”, mantida pelo pastor da igreja que frequenta em Curitiba. Nesta página o referido pastor faz o chamamento para manifestações em agosto, “contra a corrupção”, inclusive para o ato do dia 16 de agosto. Deltan Dallagnol asseverou ainda: “O cristão é aquele que acredita em mudanças quando ninguém mais acredita. Nós acreditamos porque vivemos na expectativa do poder de Deus”.

Uma missão sagrada

Ou seja, irmãos, estamos diante de uma verdadeira cruzada, onde o objetivo é derrotar a corrupção e quem a inventou: o PT, Dilma e Lula, tudo, ressalte-se, com o apoio divino. E diante de uma missão sagrada, aspectos mundanos devem ser solenemente ignorados, pois nada pode ser mais importante do que a vontade de Deus. Assim, mesmo um procurador da República pode atropelar direitos e princípios constitucionais, como o da impessoalidade, da isenção, do respeito ao devido processo legal, da presunção da inocência, pois nada está a salvo da santa fúria do cruzado imbuído de uma autoridade divina.

Homens de pouca fé

Talvez por não entender isso é que alguns juristas mais corajosos teimam em criticar os métodos da inerrante Lava Jato. Aury Lopes Jr., doutor em processo penal e professor da matéria na PUC do Rio Grande do Sul, considera que os métodos da operação são “uma releitura do modelo medieval, em que se prendia para torturar, com a tortura se obtinha a confissão, e, posteriormente usava-se a confissão como a rainha das provas".

Outro homem de pouca fé é o ex-presidente da OAB-RJ e atual deputado federal (PT-RJ), Wadih Damous, para quem a Lava Jato usa de um “método perigoso e ilegal para a democracia, assentado, fundamentalmente, na espetacularização da justiça. Pouco importa, no caso, a decisão final com trânsito em julgado. Todos estão (pré) condenados, ainda que se prove o contrário. O quadro é de total desrespeito e violação dos alicerces iluministas do processo e do direito penal”.

Voltaire e o senhor feudal

Já que Wadih citou o iluminismo, lembremos as palavras de Voltaire: “Há fanáticos de sangue frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles (...) As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva (...) Essa gente está persuadida de que o espírito santo que os penetra está acima das leis e que o seu entusiasmo é a única lei a que devem obedecer. Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar”. 

Mas nada parece deter os novos templários e o seu profeta, Sérgio Moro, que com o apoio e orientação de um poderoso senhor feudal – cujo castelo fica na Rua Von Martius, 22, Jardim Botânico, Rio de Janeiro – continuarão a saga em busca do Santo Graal, que todos já sabem qual é. Sobre este senhor feudal, lembremos mais uma vez o filósofo francês: “De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos”.

A extrema-direita que quer aparecer


Por Glauco Faria, na revista Fórum:

Se os principais dados que ganharam as manchetes da pesquisa CNT/MDA divulgada na terça-feira (21) foram aqueles relativos à avaliação positiva da presidenta Dilma (7,7%) e ao apoio a seu eventual impeachment (60%), um deles também merece atenção. Em três dos cenários analisados pelo levantamento para as eleições presidenciais de 2018, Jair Bolsonaro, ex-PP e postulante declarado ao Planalto, aparece com índices que variam entre 4,6% e 5,5% ou 5,8% a 7,3%, descontando-se os votos brancos e nulos e os indecisos.

Obviamente ainda é prematuro para se cravar algo em relação ao pleito que só vai acontecer daqui a pouco mais de três anos, mas o percentual não é desprezível para uma figura que representa um dos extremos do espectro político brasileiro. E mesmo que longe de ser competitiva, uma candidatura com tal percentual poderia ser, por exemplo, decisiva em um segundo turno, pendendo a balança para um dos lados ou pautando o debate entre os dois finalistas. Ou mesmo puxando candidaturas ao Legislativo, bancando uma participação ainda maior dos conservadores no Congresso Nacional.

Não seria a primeira vez que um candidato identificado com ideias típicas da extrema-direita teria alguma relevância no pleito presidencial. Em 1994, o candidato do extinto Partido da Reedificação da Ordem Nacional (Prona) Enéas Carneiro chegou a 7,38% dos votos válidos, ficando em terceiro lugar e desbancando nomes como Orestes Quércia e Leonel Brizola. Com um discurso ultranacionalista, em uma entrevista ao Roda Viva naquele ano disse que homossexuais não “poderiam ser um exemplo de comportamento sexual”, já que a sociedade “existe para reproduzir”, sendo “homossexuais casais um absurdo”.

Mas, na eleição seguinte, em 1998, teve 2,14% e nem sua extravagante defesa de que o Brasil deveria construir a bomba atômica e que fosse aumentado o seu efetivo militar seduziram uma parcela maior do eleitorado. Na verdade, pode-se inferir que, por seu aspecto pitoresco – celebrizado pelo bordão “meu nome é Enéas”, a maior parte dos votos recebidos pelo presidenciável do Prona em 1994 eram mais de protesto do que de adesão. Mesmo assim, a exposição garantiu que fosse o deputado federal mais votado proporcionalmente da história do país em 2002, elegendo junto consigo mais cinco parlamentares.

Na última disputa presidencial, Pastor Everaldo (PSC) tentou ser uma opção de uma direita confusa, conciliando conservadorismo político e moral com um liberalismo econômico radical. Isso, aliado a seu desempenho pífio diante das câmeras, fez com que sua candidatura, que chegou a ter 4% de intenções de voto em pesquisas, amargasse meros 0,75% dos votos válidos nas urnas.

Bolsonaro não tem esse problema de personalidade difusa assumida por Everaldo em 2014. Seu pensamento e suas ações políticas são homogêneas. Passou por partidos como PDC, PPR, PPB, PTB, PFL e PP, e namora com siglas menores para pleitear a disputa ao Planalto. Militar da reserva, é apoiador da ditadura, combate causas relacionadas aos direitos humanos e já se definiu “preconceituoso, com muito orgulho”. A respeito do PLC 122, que criminalizava a homofobia, declarou em entrevista que “a maioria dos homossexuais é assassinada por seus respectivos cafetões, em áreas de prostituição e de consumo de drogas, inclusive em horários em que o cidadão de bem já está dormindo. O PLC 122, na prática, criará uma categoria de vítimas privilegiadas, ou seja, com proteção especial em virtude de sua opção sexual”.

Se muitos ficaram espantados com os arroubos homofóbicos de Levy Fidelix no último debate entre presidenciáveis no primeiro turno, o que esperar de Bolsonaro? Por conta de declarações de cunho similar às do presidenciável do PRTB dadas ao programa CQC, o parlamentar chegou a ser condenado em primeira instância, em abril deste ano, a pagar uma indenização de R$ 150 mil ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, alegando que iria recorrer por ter foro privilegiado.

Florescimento da extrema-direita

No que diz respeito ao modus operandi da direita radical brasileira, personificada na figura de Bolsonaro, existe um “ódio cabal aos direitos humanos”, dizia em palestra proferida em março Renato Janine Ribeiro, quando ainda não havia assumido o Ministério da Educação. “O que distingue a extrema-direita hoje no Brasil é quase que mais uma agenda de costumes do que uma agenda política”, analisou, de acordo com o blogue de Roldão Arruda.

“Atacam o homossexual, a igualdade de gênero, os direitos das mulheres, e por aí. Tudo isso tem um alcance muito grande no Brasil”, disse o filósofo. “Estamos tendo no Brasil uma tolerância, que é grande, com condutas antidemocráticas que deveriam ser tipificadas como criminosas… Pregar a volta dos militares deveria ser crime, deveria levar a pessoa para a cadeia. Vários países da Europa criminalizaram a pregação nazista. Nós – que tivemos uma ditadura militar – deveríamos criminalizar a pregação da ditadura.”

A tolerância a que Janine se refere é fruto de uma situação aparentemente paradoxal no Brasil. Ao mesmo tempo em que muitas figuras políticas – mesmo as oriundas do regime militar e de seu partido, a Arena – se recusavam a se assumir como sendo de direita, o modelo de transição negociada garantiu um espaço generoso aos nostálgicos da ditadura. Algo impensável em países vizinhos que também passaram por regimes de exceção.

“Não há na Argentina uma determinação legal de que fazer apologia da ditadura é crime, mas sim há um compartilhamento social da ideia de que não há como defender o que aconteceu entre 1976 e 1983. Não existe espaço de legitimidade, por exemplo, para um [Jair] Bolsonaro, que lá seria uma figura execrada e já teria perdido o mandato legislativo”, disse em entrevista a pesquisadora Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A falta de acerto de contas com o passado, em geral, causa problemas no futuro, como a História ensina.

Há dois outros fatores que também contribuem para o caldo que permite o florescimento de posições extremadas de direita, ambos relacionados. A consolidação de grupos fortes e com ação constante nas redes sociais pregando um discurso de ódio e centrando fogo no arco que vai desde os governos petistas até a oposição de esquerda a esses mesmos governos acabou fazendo com que muitos conservadores e autodeclarados anticomunistas (ainda que isto possa parecer um contrassenso a essa altura da História) perdessem a vergonha e o medo de se assumir publicamente.

Como muitos destes grupos faziam o chamado “trabalho sujo” na internet ao inventar boatos, tentar causar pânico e agir de forma violenta contra petistas e a esquerda em geral, seu trabalho acabou interessando ao PSDB e outras legendas. Ao encampar parte desse discurso, Aécio fez uma das campanhas mais polarizadas em termos ideológicos da história das eleições presidenciais, legitimando um tipo de ação política que, ao fim, macula a própria atividade política.

Em artigo publicado no portal da Fórum em março de 2015, Daniel Mandur Thomaz, que mora em Amsterdã, falava a respeito da dificuldade de se explicar a um estrangeiro a onda conservadora no Brasil e suas diferenças em relação ao que se vê no Velho Continente. “A extrema-direita no Brasil ganhou um espaço que ela não tem na Europa: um assento na mesa de negociações com outros setores liberais de centro-direita. O desejo cego de minar o governo e espernear a derrota nas urnas faz com que partidos de direita apoiem estratégias golpistas e marchem ao lado de grupos extremistas e criminosos. Para usar uma imagem antiga, correm o sério risco de jogar fora o bebê junto com a água de banho. Esse equívoco pode ter um grande custo para o Brasil”.

A tática com fins puramente eleitorais adotadas por partidos que já ocuparam o espectro de centro-esquerda como o PSDB não encontrariam paralelo em outros países. “Declarações como as de Jair Bolsonaro, feitas em sessão plenária, de que só não estuprava uma deputada porque ela não merecia, fariam corar mesmo os reacionários europeus mais facinorosos, como o islamofóbico Geertz Wilders, político holandês cuja bandeira é a expulsão de muçulmanos (mesmo dos nascidos em território europeu)”, destaca.

“O político inglês Nigel Farange, xenófobo declarado e líder do partido anti-União Européia Ukip, na Inglaterra, causou escândalo em 2014 por se negar a declarar apoio ao casamento de pessoas do mesmo sexo, o que diria, então, a imprensa britânica diante da bancada evangélica brasileira, que defende a “cura gay”. Mesmo Marine Le Pen, na França, com seu discurso nacionalista, racista e xenófobo, tentou, pelo menos para manter as aparências, descer o tom característico de seu pai, Jean-Marie Le Pen, conhecido por seu antissemitismo e por ligações com grupos neonazistas. Enquanto isso, no Brasil, alguns grupos clamam em plena rua por intervenção militar e, consequentemente, pelo fim do Estado de direito”, assinala Mandur Thomaz.

Mas, se a centro-direita e a direita se serviram e ainda se servem desses grupos extremos, o contrário não é necessariamente verdadeiro e os radicais já começam a ver uma oportunidade de se destacar da oposição capitaneada pelo PSDB. Enquanto os tucanos se dividem entre os que se alinham a Aécio, que flerta ora de forma hesitante e ora mais firmemente com o golpismo, e aqueles que estão mais de acordo com a postura de Geraldo Alckmin, que tenta resguardar uma postura republicana para manter a confiança das elites que sempre tiveram horror à instabilidade, os extremistas não querem sangrar o governo, mas sim sua queda.

Ainda que não consigam, o fato é que deverão ter cadeira cativa na corrida presidencial de 2018. O seu tamanho vai depender dos próximos acontecimentos, mas a julgar pela polarização crescente no cenário político, sua possibilidade de crescimento não é desprezível. A mesma pesquisa CNT/MDA mostra, por exemplo, que as Forças Armadas, que o parlamentar ex-PP faz questão de associar a sua imagem, são a segunda instituição mais confiável para os entrevistados. Isso, relacionado ao fato de as pessoas hoje terem os partidos políticos em péssima conta, indica que a maré da onda conservadora pode subir ainda mais.

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