sábado, 28 de dezembro de 2013

Nietzsche – Eterno Retorno


“O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem  – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”.  – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela” – Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência, 341.
Friedrich Nietzsche
O Eterno Retorno talvez seja um dos pensamentos mais conhecidos e importantes de Nietzsche. Procurando encontrar alternativas para fugir do niilismo decorrente da morte de Deus, o pensador alemão invoca a ideia do Eterno Retorno como possibilidade de aceitar e afirmar a vida. O importante não é pensá-lo como uma hipótese cosmológica, mas sim como um desafio ético. Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente? Se você fosse condenado a viver a mesma existência infinitas vezes, e nada além disso, como se sentiria?
Este pensamento é um teste, e só os fortes podem suportar. Caso se ame a vida e a frua autenticamente, a ideia do Eterno Retorno é uma benção. Mas caso se esteja esperando pela próxima, guiando sua existência por uma pós-vida, amaldiçoando esta, neste caso, o pensamento de tudo voltar eternamente seria encarado como uma maldição. Para Nietzsche, este pensamento supera todas as religiões e metafísicas porque mantém o centro de gravidade ética no real, não se busca por justificativas além-mundo para valorizar esta existência, ela se justifica por si mesma.
Com a morte de Deus (veja aqui), o mundo perde todos os parâmetros transcendentes em que se guiava. Não temos mais certo e errado, bem e mal como valores que alguma divindade nos revelaria, tudo passa a ser determinado pelo homem, construído e destruído exclusivamente por ele. Pois bem, então a vida não tem sentido fora da própria vida. Se não há valores transcendentes, não há nenhum sentido na vida fora dela mesma, não há uma entidade para julgar nossas ações. O Eterno Retorno coage o indivíduo a dar sentido por si mesmo. Ele se torna criador de valores. Esta capacidade de criar e ser juiz de seus valores é o que justificará sua existência. Ele precisa escolher e criar pensando “quero viver isso eternamente?”.
Sendo assim, a ideia de que tudo pode retornar exatamente igual nos torna infinitamente responsáveis por nossas escolhas e atitudes. Como seremos obrigados a vivê-las infinitas vezes, precisamos fazer o melhor possível, aqui e agora. Precisamos viver de modo que repetir tudo outra vez seja uma benção! A vida não tem sentido? Ótimo! Melhor assim! Já imaginaram como seria se o mundo já estivesse justificado por um decreto divino? Já estivesse tudo decidido por algum ser superior? Por qualquer entidade que seja? Que tédio! Isso sim seria um terrível fardo! Não haveria sentido em criar nada. Portanto, o maior de todos os pesos é também o maior de todos os presentes: a vida não tem sentido! Nós damos sentido a nossas vidas, como um artista que dá sentido a sua obra. Que benção! Temos a chance, esta sim me parece divina, de sermos responsáveis por nossa própria criação. Nietzsche abriu a possibilidade de nos tornamos artistas! Esculpindo-nos como nossa própria obra de arte; dançando a música da vida, não pelo que acontece depois que ela termina, mas pelo prazer do ritmo e da melodia.
"O Eterno Retorno é um princípio seletivo. Em cada momento da vida em que hesitamos, devemos dizer: "escolhamos aquilo que deverá se repetir sem cessar", "prefiramos aquilo que voltará eternamente". E então, tudo se torna simples."
“O Eterno Retorno é um princípio seletivo. Em cada momento da vida em que hesitamos, devemos dizer: “escolhamos aquilo que deverá se repetir sem cessar”, “prefiramos aquilo que voltará eternamente”. E então, tudo se torna simples.”

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Che Guevara...declamando um poema e discursando (Vídeo raríssimo)






“O modelo socialista, é o único que pode salvar a humanidade”: Beth Carvalho


Entrevista concedida (Janeiro 2011) a um jornalista estilo William Waack, adestrado a ideologia pró-imperialista.  




Qual foi a sensação ao voltar a andar?

BETH CARVALHO: A pior da minha vida. Quando pus os pés pela primeira vez no chão, achei que nunca ia andar de novo. Parecia que não tinha mais pernas, sem força muscular. Depois, com a fisioterapia, a recuperação foi rápida. Precisei colocar dois parafusos de 15 cm cada um, só isso me fez voltar a andar. Agora sou interplanetária e biônica (risos).

Em seu novo CD, a letra “Chega” é visivelmente feminista. Por que é raro o samba dar voz a mulheres?

BETH CARVALHO: O mundo, não só o samba, é machista. Melhorou bastante devido à luta das mulheres, mas a cada cinco minutos uma mulher apanha no Brasil. É um absurdo. Parece que está tudo bem, mas não é bem assim. Sempre fui ligada a movimentos libertários.

De que forma o samba é machista?

BETH CARVALHO: A maioria dos sambistas é homem. Depois de mim, Clara Nunes e Alcione, as coisas melhoraram. O samba é machista, mas o papel da mulher é forte. O samba é matriarcal, na medida que dona Vicentina, dona Neuma, dona Zica comandam os bastidores da história. Eu, por exemplo, sou madrinha de muitos homens (risos).

A senhora é vizinha da favela da Rocinha. Como vê o processo de pacificação?

BETH CARVALHO: Faltou, por muitos anos, a força do estado nestas comunidades. Agora estão fazendo isso de maneira brutal e, de certa forma, necessária. Mas se não tiver o lado social junto, dando a posse de terreno para quem mora lá há tanto tempo, as pessoas vão continuar inseguras. E os morros virarão uma especulação imobiliária.

Alguns culpam o governo Leonel Brizola (1983-1987/1991-1994) pelo fortalecimento do tráfico nos morros. A senhora, que era amiga do ex-governador, concorda?

BETH CARVALHO: Isso é muito injusto. É absurdo. Se tivessem respeitado os Cieps, a atual geração não seria de viciados em crack, mas de pessoas bem informadas. Brizola discutia por que não metem o pé na porta nos condomínios da Avenida Viera Souto (em Ipanema) como metem nos barracos. Ele não podia fazer milagre.

Defende a permanência de Carlos Lupi no Ministério do Trabalho?

BETH CARVALHO: Olha, sou presidente de honra do PDT porque é um título carinhoso que Brizola me deu, mas não sou filiada ao PDT. Não tenho uma opinião formada sobre isso, porque não sei detalhes. Existe uma grande rigidez a partidos de esquerda. Fizeram isso com o PC do B do Orlando Silva, e agora fazem com o PDT. O que conheço do Lupi é uma pessoa muito correta. Eles deveriam ser menos perseguidos pela mídia.

Aqui na sua casa há várias imagens de Che Guevara e de Fidel Castro. Acredita no modelo socialista?

BETH CARVALHO: Eu só acredito no modelo socialista, é o único que pode salvar a humanidade. Não tem outro (fala de forma enfática). Cuba diz ‘me deixem em paz’. Os Estados Unidos, com o bloqueio econômico, fazem sacanagem com um país pobre que só tem cana de açúcar e tabaco.

Mas e a falta de liberdade de expressão em Cuba?

BETH CARVALHO: Eu não me sinto com liberdade de expressão no Brasil.

Por quê?

BETH CARVALHO: Porque existe uma ditadura civil no Brasil. Você não pode falar mal de muita coisa.

Como quais?

BETH CARVALHO: Não falo. Tem uma mídia aí que acaba com você. Existe uma censura. Não tem quase nenhum programa de TV ao vivo que nos permita ir lá falar o que pensamos. São todos gravados. Você não sabe que vai sair o que você falou, tudo tem edição. A censura está no ar.

Mas em países como Cuba a censura é institucionalizada, não?

BETH CARVALHO: Não existe isso que você está falando, para começo de conversa. Cuba não precisa ter mais que um partido. É um partido contra todo o imperialismo dos Estados Unidos. Aqui a gente está acostumada a ter vários partidos e acha que isso é democracia.

Este não seria um pensamento ultrapassado?

BETH CARVALHO: Meu Deus do céu! Estados Unidos têm ódio mortal da derrota para oito homens, incluindo Fidel e Che, que expulsaram os americanos usando apenas o idealismo cubano. Os americanos dormem e acordam pensando o dia inteiro em como acabar com Cuba. É muito difícil ter outro Fidel, outro Brizola, outro Lula. A cada cem anos você tem um Pixinguinha, um Cartola, um Vinicius de Moraes... A mesma coisa na liderança política. Não é questão de ditadura, é dificuldade de encontrar outro melhor para ocupar o cargo. É difícil encontrar outro Hugo Chávez.

Chávez é acusado por muitos de ter acabado com a democracia na Venezuela.

BETH CARVALHO: Acabou com o quê? Com o quê?

Com a democracia...

BETH CARVALHO: Chávez é um grande líder, é uma maravilha aquele homem. Ele acabou com a exploração dos Estados Unidos. Onde tem petróleo estão os Estados Unidos. Chávez acabou com o analfabetismo na Venezuela, que é o foco dos Estados Unidos porque surgiu um líder eleito pelo povo. Houve uma tentativa de golpe dos americanos apoiada por uma rede de TV.

A emissora que fazia oposição ao governo e que foi tirada do ar por Chávez...

BETH CARVALHO: Não tirou do ar. Não deu mais a concessão. É diferente. Aqui no Brasil o governo pode fazer a mesma coisa, televisão aberta é concessão pública. Por que vou dar concessão a quem deu um golpe sujo em mim? Tem todo direito de não dar.

A senhora defende que o governo brasileiro deveria cassar TV que faz oposição?

BETH CARVALHO: Acho que se estiver devendo, deve cassar sim. Tem que ser o bonzinho eternamente? Isso não é liberdade de expressão, é falta de respeito com o presidente da República. Quem cassava direitos era a ditadura militar, é de direito não dar concessão. Isso eu apoio.

Por ser oriundo dos morros, o samba foi conivente com o poder paralelo dos traficantes?
BETH CARVALHO: Não, o samba teve prejuízo enorme. Hoje dificilmente se consegue senhoras para a ala das baianas nas escolas de samba. Elas estão nas igrejas evangélicas, proibidas de sambar. Não se vê mais garoto com tamborim na mão, vê com fuzil. O samba perdeu espaço para o funk.

Quem é o culpado?

BETH CARVALHO: Isso tem tudo a ver com a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA), que quer acabar com o samba. É uma luta contra a cultura brasileira. Os Estados Unidos querem dominar o mundo através da cultura. Estas armas dos morros vêm de onde? Vem tudo de fora. Os Estados Unidos colocam armas aqui dentro para acabar com a cultura dos morros, nos fazendo achar que é paranoia da esquerda. Mas não é, não.

O samba vai resistir a esta “guerra” que a senhora diz existir?

BETH CARVALHO: Samba é resistência. Meu disco é uma resistência, não deixa de ser uma passeata: “Nosso samba tá na rua.


Sob a bandeira de Lênin


Do Portal Vermelho

Carlos Pompe *

EM 7 NOVEMBRO DE 1917 (25 DE OUTUBRO, PELO ANTIGO CALENDÁRIO RUSSO), FOI ABERTO, EM MOSCOU, O 2º CONGRESSO DOS SOVIETES E VLADIMIR LÊNIN, PRINCIPAL LÍDER DO PARTIDO BOLCHEVIQUE, FOI ELEITO PRESIDENTE DO CONSELHO DOS COMISSÁRIOS DO POVO. PELA PRIMEIRA VEZ, OS MARXISTAS ALCANÇAVAM O PODER.


Além das mudanças radicais que aconteceram no território russo e, depois, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e, mais tarde, nos países do Leste europeu e alguns da Ásia, a Revolução Russa influenciou o pensamento progressista de todo o mundo – mesmo onde nunca os revolucionários chegaram ao poder. Na esteira de seu sucesso, partidos foram fundados em inúmeros países, seguindo o modelo proposto por Lênin. Inclusive em nosso país, onde, apenas 5 anos após aquele evento, foi fundado o Partido Comunista do Brasil.

Assim como serviu de inspiração para as esquerdas de todos os continentes, a vitória dos bolcheviques também motivou a formação de uma santa aliança direitista que os fustigou militar, política, econômica e ideologicamente, dentro e fora de seus domínios, enquanto estiveram no poder. A União Soviética, que decorreu da Revolução Russa, deixou de existir em 1991 devido, principalmente, às contradições internas no país e no Partido ao longo de sua história. Também as outras experiências socialistas europeias deixaram de existir sem que isso fosse resultado de alguma invasão armada estrangeira. China, Vietnã, Coreia do Norte e Cuba – neste país latino-americano, revolucionários tomaram o poder em 1959 – continuam suas experiências de construção nacional tendo à frente partidos que se afirmam inspirados no leninismo.

As divergências que ocorreram dentro do Partido de Lênin, em especial após a sua morte, também influenciaram o movimento progressista mundial. Uniões e dissensões ocorreram, e ocorrem, ao longo das décadas, em organizações onde suas lideranças reivindicam a fidelidade ao caminho indicado pelo líder da Revolução de 1917.

Neste novembro de 2013, o PCdoB realiza seu 13º Congresso afirmando sua opção por forjar um “partido de caráter leninista para a contemporaneidade”. Nas discussões realizadas pela militância, em reuniões ou na Tribuna de Debates, todos os manifestantes reafirmaram o leninismo, embora com visões diferentes de como ele deva ser aplicado à realidade atual. Mas não houve quem renunciasse ao legado de Lênin. Disse o presidente dos comunistas, Renato Rabelo: “O PCdoB – nesta fase de sua direção na quarta geração – conseguiu situar e determinar, num esforço baseado na teoria marxista-leninista, compreendendo a realidade do atual período histórico, uma visão que embasa nosso pensamento tático e estratégico, definida no conceito: a acumulação estratégica de forças, cujo objetivo é a conquista da hegemonia dos trabalhadores e das camadas populares, configurado no poder estatal de caráter democrático-popular, visando à transição ao socialismo”.

No Brasil e no mundo, ocorrem inúmeras formas de luta e movimentos de resistência ao capitalismo. Mas as orientações das lutas populares são distintas e não há hegemonia clara de nenhuma corrente política organizada, declare-se ou não marxista. Mas neles atuam também os que marcham sob a bandeira de Lênin . 

Inspira-os as vitórias alcançadas mesmo em momentos tão adversos, como foi a invasão da União Soviética pelos nazistas, em 1941. A Revolução Bolchevique completava, então, 24 anos. Em 7 de Novembro, com os exércitos nazistas às portas de Moscou, Stálin decide ficar na capital e resistir ao ataque dos invasores. Como observa o professor Miguel Trujillo, “para manter o moral do povo e dos soldados, Stálin decide realizar o desfile anual das tropas na Praça Vermelha. Mantido em segredo até o último minuto, os soldados que dele participam saem da Praça diretamente para o campo de batalha, onde com certeza grande parte deles perdeu a vida. Mas salvou a humanidade dos nazistas. A Batalha de Moscou foi a primeira grande derrota dos exércitos nazistas, e parou o avanço alemão na frente leste. A grande virada da II Guerra viria ano e pouco depois, com a Batalha de Stalingrado”.

Stálin faz um discurso, que pode ser visto no link abaixo (são 7 minutos de discurso, com legendas em espanhol, e 7 minutos de desfile das tropas e seus armamentos) conclamando: “Sob a bandeira de Lênin, adiante até a vitória!”
Sigamos.

http://www.youtube.com/watch?v=1j8xakBb3So

Segundo os historiadores, o inverno de 1941 foi o mais frio do século, até então. Fazia - 40º Celsius na praça vermelha.


* Jornalista e curioso do mundo.
* Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.

Quer notícias da Globo?:SUZANA VIEIRA FALA MAL DO NORDESTE


Cidade chamada Cuba vira símbolo do poder dos comunistas em Portugal


Partido voltou ao poder no município após resultado expressivo nas eleições, nas quais se tornou terceira força política do país

Belarmino Fragoso/Opera Mundi

Cidade de Cuba, em Portugal, voltou a ser comandada pelo Partido Comunista; na foto, o "Café Cubense"


“Na Europa, poucos partidos comunistas sobreviveram. Somos um deles”, afirma com orgulho João Português, de 41 anos, prefeito eleito pelo Partido Comunista Português (PCP), atual terceira força política do país – atrás apenas do socialista PS (centro-esquerda) e do social-democrata PSD (direita). Desde meados de outubro, ele governa uma cidade lusitana cujo nome não podia ser mais sugestivo – Cuba, a 200 quilômetros a sudeste de Lisboa. O pequeno município com quase 5.000 habitantes, localizado no coração do Alentejo, uma das regiões historicamente mais pobres de Portugal, hoje é símbolo da chamada “reconquista vermelha”.


Vila com vestígios da época romana, alguns associam seu nome à presença de cubas, grandes vasilhas de barro para armazenar vinho, um dos produtos mais tradicionais da região. Há quem diga, contudo, que Cristóvão Colombo nasceu ali, e por isso batizou a ilha caribenha em homenagem à terra natal. Fato é que as relações com a ilha ultrapassam o nome. Desde 1976, com as primeiras eleições livres após a Revolução dos Cravos, é o “partidão” quem ganha em grande parte dos concelhos (outro nome para município, em Portugal) do Alentejo, contrariando o bipartidismo do PS e PSD.
Belarmino Fragoso/Opera Mundi
João ainda fala com o entusiasmo de quem foi responsável por devolver ao PCP o poder de Cuba, há quatro legislaturas nas mãos dos socialistas – hiato que se repetiu em outros municípios da região. Formado em Serviço Social e microempresário, é admirador de Lula e Fidel Castro – apesar das “reservas” em relação a algumas políticas do regime cubano. Critica as grandes empresas – “quem gera emprego são as pequenas” – e se coloca ao lado do partido quando o assunto é a moeda única: “Não estávamos preparados para entrar no euro”.

[Detalhe de rua em Cuba]
Em alguns setores, pode-se perceber claramente a marca comunista da administração local. A gestão da água, por exemplo, é totalmente pública. “Nossa ideologia nos impede de privatizar esse bem, mesmo que seja custoso ao Estado”, afirma. O custo de defender um Estado forte é alto: mais de 80% das receitas do município vão para folha de pagamento. A dívida municipal é de € 3,5 milhões - ou 60% das receitas próprias. Uma medida ainda a ser implementada é o orçamento participativo – que, diga-se, já funciona em cidades como Lisboa, governada por socialistas.

“Contato próximo com as pessoas”
A popularidade dos comunistas, segundo o recém-empossado prefeito que exerceu o cargo de vereador por duas vezes, tem a ver com o modo de gestão do poder local, “em contato próximo com as pessoas”. Isso, em outras palavras, se reflete ao andar pelas ruas estreitas da cidade – ladeadas de casas pintadas de branco para atenuar o calor que vai a 40ºC no verão – e conversar com estudantes, empresários, agricultores.
Mas, o que explica os melhores resultados nacionais do partido em 15 anos vai muito além do tête-à-tête, que, aliás, é um traço comum em pequenas cidades. A saturação da política atual é vista como uma das chaves para entender como o PCP foi o preferido de 11% dos eleitores e o único partido a crescer em número de votos nas últimas eleições.

Segundo a cientista política Isabella Razzuoli, da Universidade de Lisboa, ele tem sido a voz mais organizada contra as medidas de austeridade do governo de centro-direita encabeçado pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Segundo ela, a forte presença em sindicatos faz com que a agremiação consiga atrair uma base considerável de eleitores descontentes com a situação laboral no país – desemprego de 16%, cortes em salários, aposentadorias e postos de trabalho.


Dentro da esquerda, os comunistas têm de longe a maior força de mobilização. Os eleitores do PCP já não veem os socialistas como “esquerda autêntica”. Basta lembrar que foi o ex-ministro José Sócrates que em 2011 assinou o empréstimo de 78 bilhões de euros com a troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia). O jovem Bloco de Esquerda, formado por uma miscelânea de partidos pequenos de várias tendências radicais, tem perdido apoio e representantes parlamentares desde seu auge, em 2009.

Belarmino Fragoso/Opera Mundi
Mais eleitores, menos militantes
Se os eleitores do PCP crescem, os militantes diminuem. Hoje somam pouco mais de 60 mil, menos da metade dos anos 1980. Francisco Galinha, de 34 anos, está nos quadros da militância. Ele tem uma história curiosa: é parente distante de um ex-prefeito que governou Cuba na época da ditadura. Francisco, porém, desde os 16 anos é ligado aos comunistas. “Me identifico com os valores de igualdade e partilha”, afirma.

[O novo prefeito de Cuba, João Português]
Ao longo dos anos, esse partido – o único a sobreviver, clandestino, durante o regime salazarista –, passou por mudanças. O fim da Guerra Fria e a adesão de Portugal à União Europeia (UE) tiveram no começo um impacto negativo, explica a cientista política. “As perdas de votos e a redução da representação parlamentar refletiam em parte a dificuldade de adaptação do partido às transformações da sociedade portuguesa”, diz.
Retirou-se do estatuto a meta de “uma revolução democrática e nacional”, mas, nem por isso, se abandonou o marxismo-leninismo. Esse caminho mais soft do chamado eurocomunismo foi a opção escolhida pela maioria dos homólogos europeus após a queda do Muro de Berlim.
Em Portugal, os comunistas  seguem firmes no sul, mas enfrentam resistências no norte. O campesinato pobre do Alentejo, região dominada pelo latifúndio, e o operariado da Grande Lisboa e arredores foram os terrenos mais férteis para a penetração da ideologia marxista. “A pequena-burguesia rural do norte era (e continua a ser) tradicionalmente mais conservadora”, diz Isabella, que lembra também a influência da Igreja Católica como fator determinante ainda hoje para bloquear o avanço dos vermelhos.


Os desafios em época de crise não são fáceis – em Cuba e no resto do país. O alto endividamento público e o corte nos repasses de verbas do governo central aos municípios podem comprometer as promessas de campanha dos comunistas, especialmente preocupados com a área social e em como estimular o sistema produtivo do país para gerar empregos. “Não se pode medir tudo em termos de lucro e prejuízo”, defende o prefeito cubense – que ainda tem pela frente a tarefa de compor o cada vez mais minguado orçamento da cidade. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

JOSÉ Saramago , Deus e os sem terras




Prefácio do livro "Terra" escrito por José Saramago

19 de junho de 2010

O massacre de Eldorado dos Carajás completava um ano. Dezenove integrantes
do MST haviam sido brutalmente assassinados pela polícia. Em abril de 1997, o
fotógrafo Sebastião Salgado, o escritor português José Saramago e o compositor
 Chico Buarque lançam um livro/cd para relembrar o fato e marcar a importância da
 luta pelo chão: Terra (Companhia das Letras, 1999).
As fotos de Salgado retratam de forma realista os assentamentos e a vida dos
trabalhadores rurais. A introdução, a cargo de Saramago, é dura. Lembra das
promessas não-cumpridas do governo brasileiro pela reforma agrária.
Entre as canções de Chico, duas exclusivas: Levantados do Chão (com Milton
Nascimento) e Assentamento, que narra o sentimento de um migrante ao perceber
 que a cidade grande “não mora” mais nele. (informações de Brasil Almanaque da
Cultura Popular)
Abaixo, leia o prefácio do livro, escrito por José Saramago
.
É difícil defender
só com palavras a vida
(ainda mais quando ela é
esta que vê, severina). 

João Cabral de Melo Neto


José SAramago
" Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de viajar um dia a estas
paragens para certificar-se de que as pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão
morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado,
no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela
simples e honesta curiosidade de quererem saber a razão por que tinham sido
feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da
 família com o suor do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde,
por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos
 dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que
depois dela vieram, pois tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar
e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o
 mesmo ou mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para
 a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra
obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto
 e depois não ter Deus em quem mandar.
Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos,
persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer
como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos
atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas
 e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão
grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de
apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o
trabalho que as faria funcionar -  as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe
perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência
que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da
árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem
autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que,
propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos
nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.
Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que se espera de
qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação moral, e Deus, tendo
 indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor que
havia no seu tempo. Por estas razões, as de origem e as adquiridas, após ter visto
 e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar mea culpa,
 mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que
tinha caído. É certo que, a seu crédito, e para que isto não seja só um contínuo
dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando Deus se
 decidiu a expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso primeiro pai
 e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta, iriam ter ao seu
dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade. Contudo, e por
desgraça, um outro erro nas previsões divinas não demoraria a manifestar-se,
e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia acontecido.
Foi o caso que estando já a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido porquê, e não falta quem afirme que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus, aqueles nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não protestaram contra o abuso com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como acreditaram que era essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro veio ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples verificação dos factos da vida pastoril, então é porque a natureza quer que haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo quanto assim não for será chamado subversão.
Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas."



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No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas. Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do Pará, arvorando-se a si mesma em juiz numa causa em que, obviamente, só poderia ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os seus 155 soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial contra três dos camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico dos manifestantes era constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes da invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços haviam sido considerados ilegais nas mãos daqueles que, obrigados pela necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela frente a polícia militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas. Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não há nada mais fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda teima em afirmar ser complicada demais para o entendimento rude do povo.
Pelas três horas da madrugada do dia 9 de Agosto de 1995, em Corumbiara, no estado de Rondônia, 600 famílias de camponeses sem terra, que se encontravam acampadas na Fazenda Santa Elina, foram atacadas por tropas da polícia militarizada. Durante o cerco, que durou todo o resto da noite, os camponeses resistiram com espingardas de caça. Quando amanheceu, a polícia, fardada e encapuçada, de cara pintada de preto, e com o apoio de grupos de assassinos profissionais a soldo de um latifundiário da região, invadiu o acampamento. varrendo-o a tiro, derrubando e incendiando as barracas onde os sem-terra viviam. Foram mortos 10 camponeses, entre eles uma menina de 7 anos, atingida pelas costas quando fugia. Dois polícias morreram também na luta.
A superfície do Brasil, incluindo lagos, rios e montanhas, é de 850 milhões de hectares. Mais ou menos metade desta superfície, uns 400 milhões de hectares, é geralmente considerada apropriada ao uso e ao desenvolvimento agrícolas. Ora, actualmente, apenas 60 milhões desses hectares estão a ser utilizados na cultura regular de grãos. O restante, salvo as áreas que têm vindo a ser ocupadas por explorações de pecuária extensiva (que, ao contrário do que um primeiro e apressado exame possa levar a pensar, significam, na realidade, um aproveitamento insuficiente da terra), encontra-se em estado de improdutividade, de abandono. sem fruto.
Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade social e económica, vagando entre o sonho e o desespero, existem 4 800 000 famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante ingénuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. Os 19 mortos de Eldorado dos Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática, desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1 635 vítimas mortais, cobrindo de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil. com mais evidência para Bahia, Maranhão. Mato Grosso, Pará e Pernambuco, que contam, só eles, mais de mil assassinados.
E a Reforma Agrária, a reforma da terra brasileira aproveitável, em laboriosa e acidentada gestação, alternando as esperanças e os desânimos, desde que a Constituição de 1946, na seqüência do movimento de redemocratização que varreu o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, acolheu o preceito do interesse social como fundamento para a desapropriação de terras? Em que ponto se encontra hoje essa maravilha humanitária que haveria de assombrar o mundo, essa obra de taumaturgos tantas vezes prometida, essa bandeira de eleições, essa negaça de votos, esse engano de desesperados? Sem ir mais longe que as quatro últimas presidências da República, será suficiente relembrar que o presidente José Sarney prometeu assentar 1.400.

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“Preconceito contra Bolsa Família é fruto da imensa cultura do desprezo”, diz pesquisadora.


Com Isadora Peron
O Programa Bolsa Família fez 10 anos no domingo, dia 20. Quando foi lançado, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, atendia 3,6 milhões de famílias, com cerca de R$ 74 mensais, em média. Hoje se estende a 13,8 milhões de famílias e o valor médio do benefício é de R$ 152. No conjunto, beneficia cerca de 50 milhões de brasileiros e é considerado barato por especialistas: custa menos de 0,5% do PIB.
Para avaliar os impactos desse programa a socióloga Walquiria Leão Rego e o filósofo italiano Alessandro Pinzani realizaram um exaustivo trabalho de pesquisa, que se estendeu de 2006 a 2011. Ouviram mais de 150 mulheres beneficiadas pelo programa, localizadas em lugares remotos e frequentemente esquecidos, como o Vale do Jequitinhonha, no interior de Minas.
O resultado da pesquisa está no livro Vozes do Bolsa Família, lançado há pouco. Segundo as conclusões de seus autores, o incômodo e as manifestações contrárias que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas. Seria resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres.
Os pesquisadores também rebatem a ideia de que o benefício acomoda as pessoas. “O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, diz Walquiria, que é professora de Teoria da Cidadania na Unicamp.
Na entrevista abaixo – concedida à repórter Isadora Peron – ela fala desta e de outras conclusões do trabalho.
Como surgiu a ideia da pesquisa?
Quando vimos a dimensão que o programa estava tomando, atendendo milhões de famílias, percebemos que teria impacto na sociedade. Nosso objetivo foi avaliar esse impacto. Uma vez que o programa determina que a titularidade do benefício cabe às mulheres, era preciso conhecê-las. Então resolvemos ouvir mulheres muito pobres, que continuam muito pobres, em regiões tradicionalmente desassistidas pelo Estado, como o Vale do Jequitinhonha, o interior do Maranhão, do Piauí…
E quais foram os impactos que perceberam?
Toda a sociologia do dinheiro mostra que sempre houve muita resistência, inclusive das associações de caridade, em dar dinheiro aos pobres. É mais ou menos aquele discurso: “Eles não sabem gastar, vão comprar bobagem.” Então é melhor que nós, os esclarecidos, façamos uma cesta básica, onde vamos colocar a quantidade certa de proteínas, de carboidratos… Essa resistência em dar dinheiro ao pobres acontecia porque as autoridades intuíam que o dinheiro proporcionaria uma experiência de maior liberdade pessoal. Nós pudemos constatar na prática, a partir das falas das mulheres. Uma ou duas delas até usaram a palavra liberdade. “Eu acho que o Bolsa Família me deu mais liberdade”, disseram. E isso é tão óbvio. Quando você dá uma cesta básica, ou um vale, como gostavam de fazer as instituições de caridade do século 19, você está determinando o que as pessoas vão comer. Não dá chance de pessoas experimentarem coisas. Nenhuma autonomia.
Está dizendo que essas pessoas ganharam liberdade?
Estamos tratando de pessoas muito pobres, muito destituídas, secularmente abandonadas pelo Estado. Quando falamos em mais autonomia, liberdade, independência, estamos nos referindo à situação anterior delas, que era de passar fome. O que significa dizer de uma pessoa que está na linha extrema de pobreza e que continua pobre ganhou mais liberdade? Significa que ganhou espaços maiores de liberdade ao receber o benefício em dinheiro. É muito forte dizer que ganhou independência financeira. Independência financeira temos nós – e olhe lá.
O que essa liberdade significou na prática, no cotidiano das pessoas?
Proporcionou a possibilidade de escolher. Essa gente não conhecia essa experiência. Escolher é um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática. Que escolhas elas fazem? Elas descobriram, por exemplo, que podem substituir arroz por macarrão. No Nordeste, em 2006 e 2007, estava na moda o macarrão de pacote. Antes, havia macarrão vendido avulso. O empacotamento dava um outro caráter para o macarrão. Mais valor. Elas puderam experimentar outros sabores, descobriram a salsicha, o iogurte. E aprenderam a fazer cálculos. Uma delas me disse: “Ixe, no começo, gastei tudo na primeira semana”. Depois aprendeu que não podia gastar tudo de uma vez.
A que atribui a resistência de determinados setores da sociedade ao pagamento do benefício?
O Bolsa Família é um programa barato, mas como incomoda a classe média (ela ri). Esse incômodo vem do preconceito.
Fala-se que acomoda os pobres.
Como acomoda? O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida, como qualquer pessoa. Quem diz isso falsifica a história. Não há acomodação alguma. Os maridos dessas mulheres normalmente estavam desempregados. Ao perguntar a um deles quando tinha sido a última vez que tinha trabalhado, ele respondeu: “Faz uns dois meses, eu colhi feijão”. Perguntei quanto ele ganhava colhendo feijão. Disse que dependia, que às vezes ganhava 20, 15, 10 reais. Fizemos as contas e vimos que ganhava menos num mês do que o Bolsa Família pagava. Por que ele tem que se sujeitar a isso, praticamente à semiescravidão? Esses estereótipos tem que ser desfeitos no Brasil, para que se tenha uma sociedade mais solidária, mais democrática. É preciso desfazer essa imensa cultura do desprezo.
No livro a senhora diz que essas mulheres veem o benefício como um favor do governo.
Sim, de 70% a 80% ainda veem o Bolsa Família como um favor. Encontramos poucas mulheres que achavam que é um direito. Isso se explica porque temos uma jovem democracia. A cultura dos direitos chegou muito tarde ao Brasil. Imagino que daqui para a frente a ideia de que elas têm direito vai ser mais reforçada. Para isso precisamos, porém, de políticas públicas específicas. Seriam um segundo, um terceiro passo… Os desafios a partir de agora são muito grandes.
Qual é a sua avaliação geral do programa?
Acho que o Bolsa Família foi uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos. Tornou visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos. Essa talvez seja a maior conquista.
Entre as mulheres que ouviu, alguma foi mais marcante para a senhora?
Uma das mais marcantes foi uma jovem no sertão do Piauí. Ela me disse: “Essa foi a primeira vez que a minha pessoa foi enxergada”. Tinha uma outra, do Vale do Jequitinhonha, que morava num casebre, sozinha com três filhos. Quando começou a contar a história dela, perguntei qual era a sua idade, porque parecia que já tinha vivido muita coisa. Ela respondeu: “29 anos”. E eu: “Mas só 29?” Ela: “Mas, dona, a minha vida é comprida, muito comprida.” Percebi que falar que “a minha vida é muito comprida” é quase sinônimo de “é muito sofrida”.

“Preconceito contra Bolsa Família é fruto da imensa cultura do desprezo”, diz pesquisadora.


Com Isadora Peron
O Programa Bolsa Família fez 10 anos no domingo, dia 20. Quando foi lançado, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, atendia 3,6 milhões de famílias, com cerca de R$ 74 mensais, em média. Hoje se estende a 13,8 milhões de famílias e o valor médio do benefício é de R$ 152. No conjunto, beneficia cerca de 50 milhões de brasileiros e é considerado barato por especialistas: custa menos de 0,5% do PIB.
Para avaliar os impactos desse programa a socióloga Walquiria Leão Rego e o filósofo italiano Alessandro Pinzani realizaram um exaustivo trabalho de pesquisa, que se estendeu de 2006 a 2011. Ouviram mais de 150 mulheres beneficiadas pelo programa, localizadas em lugares remotos e frequentemente esquecidos, como o Vale do Jequitinhonha, no interior de Minas.
O resultado da pesquisa está no livro Vozes do Bolsa Família, lançado há pouco. Segundo as conclusões de seus autores, o incômodo e as manifestações contrárias que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas. Seria resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres.
Os pesquisadores também rebatem a ideia de que o benefício acomoda as pessoas. “O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, diz Walquiria, que é professora de Teoria da Cidadania na Unicamp.
Na entrevista abaixo – concedida à repórter Isadora Peron – ela fala desta e de outras conclusões do trabalho.
Como surgiu a ideia da pesquisa?
Quando vimos a dimensão que o programa estava tomando, atendendo milhões de famílias, percebemos que teria impacto na sociedade. Nosso objetivo foi avaliar esse impacto. Uma vez que o programa determina que a titularidade do benefício cabe às mulheres, era preciso conhecê-las. Então resolvemos ouvir mulheres muito pobres, que continuam muito pobres, em regiões tradicionalmente desassistidas pelo Estado, como o Vale do Jequitinhonha, o interior do Maranhão, do Piauí…
E quais foram os impactos que perceberam?
Toda a sociologia do dinheiro mostra que sempre houve muita resistência, inclusive das associações de caridade, em dar dinheiro aos pobres. É mais ou menos aquele discurso: “Eles não sabem gastar, vão comprar bobagem.” Então é melhor que nós, os esclarecidos, façamos uma cesta básica, onde vamos colocar a quantidade certa de proteínas, de carboidratos… Essa resistência em dar dinheiro ao pobres acontecia porque as autoridades intuíam que o dinheiro proporcionaria uma experiência de maior liberdade pessoal. Nós pudemos constatar na prática, a partir das falas das mulheres. Uma ou duas delas até usaram a palavra liberdade. “Eu acho que o Bolsa Família me deu mais liberdade”, disseram. E isso é tão óbvio. Quando você dá uma cesta básica, ou um vale, como gostavam de fazer as instituições de caridade do século 19, você está determinando o que as pessoas vão comer. Não dá chance de pessoas experimentarem coisas. Nenhuma autonomia.
Está dizendo que essas pessoas ganharam liberdade?
Estamos tratando de pessoas muito pobres, muito destituídas, secularmente abandonadas pelo Estado. Quando falamos em mais autonomia, liberdade, independência, estamos nos referindo à situação anterior delas, que era de passar fome. O que significa dizer de uma pessoa que está na linha extrema de pobreza e que continua pobre ganhou mais liberdade? Significa que ganhou espaços maiores de liberdade ao receber o benefício em dinheiro. É muito forte dizer que ganhou independência financeira. Independência financeira temos nós – e olhe lá.
O que essa liberdade significou na prática, no cotidiano das pessoas?
Proporcionou a possibilidade de escolher. Essa gente não conhecia essa experiência. Escolher é um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática. Que escolhas elas fazem? Elas descobriram, por exemplo, que podem substituir arroz por macarrão. No Nordeste, em 2006 e 2007, estava na moda o macarrão de pacote. Antes, havia macarrão vendido avulso. O empacotamento dava um outro caráter para o macarrão. Mais valor. Elas puderam experimentar outros sabores, descobriram a salsicha, o iogurte. E aprenderam a fazer cálculos. Uma delas me disse: “Ixe, no começo, gastei tudo na primeira semana”. Depois aprendeu que não podia gastar tudo de uma vez.
A que atribui a resistência de determinados setores da sociedade ao pagamento do benefício?
O Bolsa Família é um programa barato, mas como incomoda a classe média (ela ri). Esse incômodo vem do preconceito.
Fala-se que acomoda os pobres.
Como acomoda? O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida, como qualquer pessoa. Quem diz isso falsifica a história. Não há acomodação alguma. Os maridos dessas mulheres normalmente estavam desempregados. Ao perguntar a um deles quando tinha sido a última vez que tinha trabalhado, ele respondeu: “Faz uns dois meses, eu colhi feijão”. Perguntei quanto ele ganhava colhendo feijão. Disse que dependia, que às vezes ganhava 20, 15, 10 reais. Fizemos as contas e vimos que ganhava menos num mês do que o Bolsa Família pagava. Por que ele tem que se sujeitar a isso, praticamente à semiescravidão? Esses estereótipos tem que ser desfeitos no Brasil, para que se tenha uma sociedade mais solidária, mais democrática. É preciso desfazer essa imensa cultura do desprezo.
No livro a senhora diz que essas mulheres veem o benefício como um favor do governo.
Sim, de 70% a 80% ainda veem o Bolsa Família como um favor. Encontramos poucas mulheres que achavam que é um direito. Isso se explica porque temos uma jovem democracia. A cultura dos direitos chegou muito tarde ao Brasil. Imagino que daqui para a frente a ideia de que elas têm direito vai ser mais reforçada. Para isso precisamos, porém, de políticas públicas específicas. Seriam um segundo, um terceiro passo… Os desafios a partir de agora são muito grandes.
Qual é a sua avaliação geral do programa?
Acho que o Bolsa Família foi uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos. Tornou visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos. Essa talvez seja a maior conquista.
Entre as mulheres que ouviu, alguma foi mais marcante para a senhora?
Uma das mais marcantes foi uma jovem no sertão do Piauí. Ela me disse: “Essa foi a primeira vez que a minha pessoa foi enxergada”. Tinha uma outra, do Vale do Jequitinhonha, que morava num casebre, sozinha com três filhos. Quando começou a contar a história dela, perguntei qual era a sua idade, porque parecia que já tinha vivido muita coisa. Ela respondeu: “29 anos”. E eu: “Mas só 29?” Ela: “Mas, dona, a minha vida é comprida, muito comprida.” Percebi que falar que “a minha vida é muito comprida” é quase sinônimo de “é muito sofrida”.