Canções de Belchior para deixar a vida melhor que o sonho
No momento mais crítico da repressão as canções de Belchior chegaram cortantes como faca em seu disco Alucinação, de 1976, o segundo, mas que consolidou sua carreira. Os versos de resistência de 40 anos atrás embalaram gerações, e hoje parecem mais atuais que nunca.
Do Portal Vermelho
Por Mariana Serafini
Belchior em 1976
Do interior do Ceará, precisamente na cidade de Sobral, nasceu um dos maiores compositores do país, o Belchior que impulsionou uma leva de músicos nordestinos a ganhar o coração do restante do Brasil. De poeta apaixonado a músico experimental, ele fez quase tudo, e muito bem.Os militares não estavam para conversa, mas ainda assim Belchior cantou a angústia sem perder a beleza em nenhum momento. E esta semana, ao revisitar sua obra por razão de seus 70 anos, completos na última quarta-feira (26)*, me dei conta de que as canções estão “intactas” para esse tempo que andou mexendo com a gente sim.
De 1974 a 2008 foram 20 discos, muitos deles só com inéditas. E já no primeiro, Mote e Glosa (1974), ele deixou bem claro que estava disposto a cantar um novo mundo. A primeira canção, que dá nome ao disco, anuncia “o novo, o novo, o novo, o novo!”.
Mesmo com a ausência do músico, que há alguns anos se afastou dos palcos, seus fãs festejaram (e muito) a chegada de seus 70 anos. Poucas vezes tivemos tantos colaboradores no Vermelho querendo falar sobre o mesmo assunto. Todos queriam mandar um abraço, dar um cheiro, um beijo, um aperto de mão no Belchior. A sensação é de que todos queriam dizer “parabéns, Belchior, e obrigada!”.
Por isso, esta foi a primeira vez que o caderno Prosa, Poesia & Arte “ficou pequeno”. Publicamos matérias ao longo dos dias e reservamos cinco para fechar “a semana do Belchior”. Entre os colunistas, Luciano Siqueira fez questão de dedicar seu espaço ao rapaz latino-americano. E na redação, em São Paulo, teve até “festa” na quarta-feira (26), improvisamos uma caixa de som e um telefone para passar a tarde embalados pelo Alucinação.
Nesta matéria que abre o caderno fizemos diferente: “integramos” a equipe do Vermelho num mesmo espaço. Cada um dos nossos jornalistas indicou uma canção que em algum momento marcou a vida. Há quem tenha dito “mas essa que eu vou dizer todo mundo conhece” (é o hábito da profissão de sempre querer contar a novidade, mesmo que já tenha passado décadas). Outros alegaram que era impossível escrever só um parágrafo sobre Belchior, e assim nasceram os textos da Eliz Brandão e do José Carlos Ruy. Teve ainda os que disseram “mas eu não conheço nada” e em seguida cantarolaram 4, 5 canções (imagina só se conhecessem?!).
Leia os depoimentos da redação e ouças as canções:
Inácio Carvalho, editor do Vermelho, indica Fotografia 3x3
Não me lembro muito bem da primeira vez que escutei uma música do Belchior, esse latino-americano nascido no meu centro do mundo. Mas lembro que ele me ensinou a ter coisas novas pra dizer, a amar mais o meu dia e a descobrir o poder da alegria. É isso que eterniza a obra do nosso menestrel, sentir em suas músicas aquilo que vivemos e o que sonhamos viver. Comigo é assim, trago de cabeça suas canções desde quando me juntava aos amigos em Sobral pra escutar e cantar Belchior ou virar noites em serenatas, ainda quando aprendíamos sobre o amor.
Dayane Silva Santos, repórter de Brasil, indica Medo de Avião
“Medo de Avião” certamente é uma das músicas mais lembradas quando se fala de Belchior. Particularmente, tive a oportunidade de viver um momento mágico em minha vida e toda vez que essa música toca me lembro desse momento. Como liderança estudantil secundarista, integrei a direção da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo que criou o projeto cultural UMES Cantarena, realizado entre os anos de 1995 e 2001, com a apresentação de mais de 150 compositores. No dia 5 de junho de 1995, Belchior se apresentou. Como era de praxe, fomos busca-lo no aeroporto. Acostumada a ouvir sua voz somente pelo rádio ou pelo arranhar da agulha da vitrola – sim, sou desse tempo -, foi pura magia. Ainda mais no aeroporto. Ao recebê-lo, não podíamos deixar de perguntar: “Assim como na música, você tem mesmo medo de avião?”. Com um sorriso e percebendo a nossa gafe, ele sorriu e, gentilmente, disse que foi um voo tranquilo.
Toni C., jornalista da TV Vermelho, indica Apenas um rapaz latino-americano
Apenas um rapaz...
Belchior é um artista que basta ouvir seu nome para me remeter diretamente à minha infância. Era o artista do momento na época onde suas canções eram executadas nas rádios que minha mãe ouvia e sua presença era comum nos programas de auditório na televisão. A música que me vem à cabeça assim que ouço o nome do artista é Apenas Um Rapaz Latino Americano, não em sua voz, mas a rima que me identifico está no rap dos Racionais MC's na bombástica Capítulo 4 Versículo 3: "Sou apenas um rapaz Latino Americano/ Apoiado por 50 mil manos/ Efeito colateral que seu sistema fez/ Racionais Capítulo 4 Versículo 3".
Mariana Serafini, repórter de América Latina, indica A Palo Seco
Nasci na fronteira do Brasil com a Argentina e o Paraguai e desde criança tinha a sensação de que América Latina “ficava mais perto” da minha casa. Mas foi Belchior, pelos 13, 14 anos, que me fez perceber a preferência pelo tango argentino ao invés do blues. Lembro bem de contar os dias para ter 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul e enquanto isso despertar o interesse pela nossa música, a nossa literatura e o nosso cinema, ao invés de buscar referências no povo “do lado de cima”. A Palo Seco foi um canto que feito faca cortou e me fez desesperar para estancar as veias que foram abertas.
Railídia Carvalho, repórter de Movimentos, indica Medo de Avião, como a Dayane
O Belchior não é um músico que eu tenha acompanhado, mas tem um episódio que nunca me saiu da cabeça nestes tempos em que minha memória anda curta. Um vez , em 1985, eu vi o Belchior ao vivo. Foi na Transamazônica em um showmício, naquela época podia. Mamãe era militante e liderança do PMDB em Altamira, onde morávamos. A eleição era para prefeito e o nosso candidato seu Nelson Kajihara. Eu tinha 14 anos, mais ou menos. Lembro dele cantando Medo de Avião e o meu primo Derny , de 22 anos, músico, vibrava. Eu lembro de abraçar o Belchior e sentir "puxa, tô abraçando um artista famoso". Meu primo pegou autógrafo. Falei com meu primo hoje e perguntei sobre esse dia. Ele me disse que enquanto os políticos discursavam o Belchior estava sentado fumando um charuto. O curioso é que à época nem imaginava que eu poderia virar cantora e ter a música como imprescindível na minha vida. Meu primo continua músico e tem uma música no primeiro CD que eu vou lançar. Algumas recordações do Belchior.
Thiago Cassis, não integra a redação, é colaborador do “Arquibancada” e indica Rodagem
“Rodagem é minha música do Belchior que mais escuto atualmente! Por estar no meu disco preferido dele, o primeiro, pelos arranjos de cordas que são lindos e pela letra que tem trechos como “Semana que entra, no primeiro dia (domingo), eu te encontro na feira, Luzia”
Joana Rozowykwiat é repórter da área de Economia, indica Alucinação
Tayguara Ribeiro, jornalista da Rádio Vermelho, indica Como Nossos Pais
Um dos maiores clássicos da música brasileira, Como Nossos Pais, foi o meu contato mais íntimo com a obra de Belchior. A letra, eternizada na voz daquela que para mim é a maior cantora brasileira de todos os tempos, Elis Regina, me marca não apenas pelos versos fortes e sintonizados com uma melodia que nos faz viajar para o interior de nós mesmos, mas também pelas lembranças que trazem da minha juventude. Quando mais novo, ouvia minha mãe cantando na noite paulistana, em bares e festivais de música, grandes canções da MPB, entre elas, claro, Como Nossos Pais. Logo, impossível não lembrar dela, e daquela época que vivi, cada vez que ouço esta música. Quando mais velho, passei a prestar atenção na beleza de frases como: “Viver é melhor que sonhar, Eu sei que o amor é uma coisa boa, Mas também sei, Que qualquer canto é menor, Que a vida de qualquer pessoa”. Faz refletir sobre as expectativas que criamos para nós mesmos, sobre os sonhos que muitas vezes nos prendem e impedem que vivamos o real e que percebamos tudo o que está a nossa volta.
A letra de Belchior e a voz de Elis se encontraram em perfeita harmonia e para mim, além de diversos outros motivos que poderia enumerar aqui, mostram a grandiosidade da cultura brasileira. Uma música quando nos toca, nos faz refletir e nos remete a outros momentos de nossa vida mostram a importância dos artistas que criaram e interpretaram. Parece simples, mas poucas canções tem esta magnitude.
*Artigo resgatado produzido à época do aniverśario de 70 anos do músico que morreu neste sábado (29)
A letra de Belchior e a voz de Elis se encontraram em perfeita harmonia e para mim, além de diversos outros motivos que poderia enumerar aqui, mostram a grandiosidade da cultura brasileira. Uma música quando nos toca, nos faz refletir e nos remete a outros momentos de nossa vida mostram a importância dos artistas que criaram e interpretaram. Parece simples, mas poucas canções tem esta magnitude.
*Artigo resgatado produzido à época do aniverśario de 70 anos do músico que morreu neste sábado (29)
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