Golpe: A substituição da farda pela toga
Por Marco Weissheimer, no site Sul-21:
“O que temos hoje no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza e onde o Judiciário funciona como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Essas medidas de exceção interrompem a democracia em alguns países e, em outros, mantêm um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza”. A avaliação é de Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito da PUC-SP, que esteve em Porto Alegre na última semana participando de um debate com a professora de Filosofia, Marcia Tiburi, sobre autoritarismo e fascismo no século XXI.
Autor do livro “Autoritarismo e golpes na América Latina – Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”, Pedro Serrano sustenta, em entrevista ao Sul21, que o sistema de justiça está substituindo o papel que os militares desempenhavam na interrupção de democracias na América Latina. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assinala Serrano, fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Para o professor da PUC-SP, essa foi uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate a um suposto inimigo. “O que parece estar ocorrendo na América Latina é a substituição da farda pela toga”.
Como nasceu a pesquisa que deu origem ao seu mais recente livro, “Autoritarismo e Golpes na América Latina: Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”?
O objeto fundamental dessa pesquisa foi identificar como são implementadas, na América Latina, medidas de exceção dentro da democracia. Eu comecei a lidar com o tema do estado de exceção em 2007. Antes disso, já me interessava o tema do Judiciário e da jurisdição em relação a esse tema da exceção. Apesar de vir da área do Direito Constitucional, estou trabalhando hoje, no Mestrado da PUC-SP, com Teoria da Decisão Jurídica. Pesquisando sobre esse tema, deparei-me com a possibilidade de a exceção ocorrer em uma decisão judicial. Neste caso, teríamos uma decisão judicial que, a título de aplicar o Direito, suspenderia o mesmo em nome do combate a um determinado inimigo.
“O que temos hoje no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza e onde o Judiciário funciona como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Essas medidas de exceção interrompem a democracia em alguns países e, em outros, mantêm um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza”. A avaliação é de Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito da PUC-SP, que esteve em Porto Alegre na última semana participando de um debate com a professora de Filosofia, Marcia Tiburi, sobre autoritarismo e fascismo no século XXI.
Autor do livro “Autoritarismo e golpes na América Latina – Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”, Pedro Serrano sustenta, em entrevista ao Sul21, que o sistema de justiça está substituindo o papel que os militares desempenhavam na interrupção de democracias na América Latina. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assinala Serrano, fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Para o professor da PUC-SP, essa foi uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate a um suposto inimigo. “O que parece estar ocorrendo na América Latina é a substituição da farda pela toga”.
Como nasceu a pesquisa que deu origem ao seu mais recente livro, “Autoritarismo e Golpes na América Latina: Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”?
O objeto fundamental dessa pesquisa foi identificar como são implementadas, na América Latina, medidas de exceção dentro da democracia. Eu comecei a lidar com o tema do estado de exceção em 2007. Antes disso, já me interessava o tema do Judiciário e da jurisdição em relação a esse tema da exceção. Apesar de vir da área do Direito Constitucional, estou trabalhando hoje, no Mestrado da PUC-SP, com Teoria da Decisão Jurídica. Pesquisando sobre esse tema, deparei-me com a possibilidade de a exceção ocorrer em uma decisão judicial. Neste caso, teríamos uma decisão judicial que, a título de aplicar o Direito, suspenderia o mesmo em nome do combate a um determinado inimigo.
Em 2007, você já vislumbrava algum vestígio de medidas de exceção no Brasil?
Não. Era um interesse mais teórico mesmo relacionado a uma leitura que Agamben e Benjamin fazem do conceito de exceção a partir da obra de Carl Schmitt. Com o surgimento do Estado Moderno, após a Idade Média, e da centralização do poder político no Estado, surge com força o conceito de soberania. Jean Bodin foi o primeiro autor a tratar isso de forma mais articulada e consistente, razão pela qual, muitos o consideram o fundador da ciência política. Bodin entende a soberania como um poder absoluto dos reis, que estabelece uma relação de servidão entre Estado e pessoa, com caráter eterno. A partir das revoluções Francesa e Americana ocorre a secularização do conceito de pessoa. Até então, ela era revestida de um caráter teológico, onde afirmava-se que todos somos filhos do mesmo Pai e, por isso, dotados de uma certa igualdade. As revoluções burguesas secularizam essa noção, trazendo para cada ser humano, pelo simples fato de ser humano, certa proteção jurídico-política, um conjunto de direitos mínimos reconhecidos pelo simples fato de alguém ser humano.
O pensamento autoritário, pré-iluminista, não deixa de existir por conta disso e passa a propor outra forma de soberania absoluta, que consiste em dizer mais ou menos o seguinte: em épocas de paz e tranquilidade, é correto ter esse sistema de direitos como forma de governança social, mas, quando há a ameaça de um inimigo, ou um cataclismo natural, pode ser necessário afastar o Direito para garantir a sobrevivência do Estado e da sociedade. A Constituição de Weimar, de 1919, chamava isso de estado de exceção. Até então, esse tema era pensado principalmente no âmbito da guerra, do conflito entre estados. O inimigo era, fundamentalmente, outro Estado que poderia atacar o meu Estado. Esse elemento está presente em todas as constituições contemporâneas, inclusive a brasileira que prevê estado de sítio e estado de defesa.
Carl Schmitt trouxe essa noção do regime jurídico da guerra para o plano interno, para a relação entre Estado e pessoa, criando essa figura da soberania absoluto a título de atender uma demanda de segurança da sociedade. O Estado nazista acaba se tornando o grande paradigma desse modelo. Hitler assumiu o poder em 1933. Três meses depois, ocorre o incêndio do Reichstag. Hitler acusa os comunistas de ter provocado o incêndio e, para combater esse inimigo, declara o estado de exceção, suspendendo os direitos. É interessante notar que, durante a ditadura hitlerista, a Constituição de Weimar não deixou de vigir. Hitler não negou a Constituição. Ele simplesmente suspendeu seus direitos fundamentais.
Isso foi feito por meio de qual instrumento?
Por meio de um ato legal, uma espécie de decreto, aprovado pelo Parlamento. Isso fornece certo paradigma para o que vão ser as ditaduras no século XX. Elas serão governos de exceção, ou seja, ocuparão o poder com uma estrutura de soberania absoluta, numa relação de servidão com a população em geral, suspendendo os direitos de todos, a título de combater o inimigo. Isso foi feito sempre acompanhado do discurso da provisoriedade. A ditadura brasileira e outras ditaduras latino-americanas apresentam, todas elas, esse discurso. Segundo ele, a ditadura duraria pouco tempo, até que o inimigo fosse derrotado. Depois disso, retornaria a normalidade democrática.
Nestes governos de exceção, ocorre a suspensão de direitos, em algum nível, de toda a sociedade. O direito à livre expressão nas ditaduras latino-americanas foi suspenso de plano para toda a sociedade. Se alguém fosse identificado como inimigo, passava a ter o seu direito à integridade física e à própria vida suspenso. O inimigo, neste caso, não era identificado com nenhuma etnia ou num grupo social específico. O comunista podia ser branco, negro, pobre ou rico.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, ganhou força a ideia de que era preciso ter um discurso universal democrático. A esquerda passou a adotar a democracia como um valor estratégico e a direita conservadora também passou a ter um discurso democrático. Segundo a linha de pensamento desenvolvida por Agamben, a partir daí, ao invés de termos governos de exceção, passamos a ter medidas de exceção no interior da democracia. Um exemplo disso é o Patriot Act, aprovado nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. É uma lei que autoriza o uso da tortura, que suspende, portanto, todo o direito à integridade física, para combater um inimigo muito bem localizado numa etnia e numa religião: a muçulmana. A sociedade como um todo manteve o uso de seus direitos. Em um primeiro momento, a medida de exceção atingiu mais especificamente um grupo da sociedade. Depois passou a atingir outros setores também. O mesmo se deu com as leis antiterroristas na Europa.
Então, no interior de regimes democráticos ocidentais passaram a ocorrer medidas de exceção. Aqui na América Latina, a conclusão a que cheguei a partir da pesquisa que realizei em Honduras, Paraguai e na Venezuela é que o agente da exceção – aquele que a sociedade, ou aquilo que chamo de ralé, atribui a função de instaurar a exceção – é o sistema de justiça, ou direta ou indiretamente apoiando alguma medida do parlamento. Essas medidas de exceção têm sido produzidas em dois sentidos: interromper a democracia em alguns países e, em outros, manter um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza.
Isso faz com que tenhamos um estado de exceção permanente, vivendo em conjunto com o estado democrático de direito, que governa os territórios ocupados pela pobreza através de, no caso brasileiro, uma força de ocupação territorial que é a PM. A PM não é uma polícia. Ela é armada e estruturada como uma força de ocupação territorial. Você vai em qualquer região de periferia de uma grande cidade e tem a sensação de estar em um território ocupado onde não se pode mais circular em determinados horários e onde há restrições ao livre pensamento em determinadas situações. Se você é suspeito, pode ser torturado e morto. Em resumo, é um território onde toda a população que vive nele está sujeita a uma exceção permanente.
Agora, mesmo nos territórios governados pelo Estado de Direito, o que tem se observado na América Latina é a produção de medidas de exceção para perseguir oponentes políticos, o que se aplica também a Venezuela.
Na sua avaliação, esse é um fenômeno novo ou é a expressão de uma tendência mais antiga na América Latina? A relação do Judiciário brasileiro com o golpe de 1964 não guarda semelhança com o que estamos ver acontecer agora?
A figura da medida de exceção é antiga, não só na América Latina, como na história humana. A presença desse tipo de medidas em regimes democráticos não é nova. O que ocorre hoje é que ela passa a ser estruturante, passa a ser um modo para produzir autoritarismos na democracia. O Judiciário sempre teve um papel conservador, exercendo uma certa tutela dos interesses das elites em praticamente todos os países do mundo. O que é interessante, no caso da América Latina, é que ele passa a ter um papel novo na sua história, assumindo a condição de uma espécie de poder moderador, um controlador da democracia para garantir que ela não extravase seus limites. Esse tipo de mecanismo de controle sempre existiu na história humana.
A Constituição não nasce com a ideia que temos dela hoje, como um documento que traz o que há de melhor numa sociedade estabelecido na forma de direitos. As constituições americana e francesa foram formas de controle dos avanços da revolução. Logo que ocorreu a independência dos Estados Unidos, houve a produção de legislações em seus estados membros, antigas colônias, em benefício de pequenos produtores, pequenos agricultores, devedores. A elite americana entrou em pânico e produz uma Constituição pra conter esse ímpeto e centralizar mais o poder. Na França foi pior ainda. Só podia votar quem tivesse patrimônio ou renda. Acho que é por isso que Marx vai falar na democracia burguesa. Era isso mesmo. A classe trabalhadora não votava.
Hoje nós temos a introdução de algumas medidas concretas como forma de contenção da democracia na América Latina, amparadas pelo Judiciário ou praticadas por ele. Em Honduras, em 2009, a decisão de afastar o presidente Manuel Zelaya foi do Judiciário. O presidente foi afastado do cargo por uma ordem judicial, mas essa ordem foi executada pelo Exército e não pela Polícia como deveria ser. Como se tratava de uma ordem liminar, eles deveria ter apresentado o preso ao juiz. Ao invés disso, as forças armadas expulsaram Zelaya do país, contrariando um dispositivo expresso da Constituição que proíbe a expulsão de hondurenhos do país e impedindo o direito de defesa dele. Essas medidas são tão agressivas à Constituição que, depois que o mandato de Zelaya acaba, a Suprema Corte reconhece a ilegalidade e anula aquela ordem. Mas aí já tinha terminado o mandato.
No Paraguai, em 2012, a situação chega a ser pior. Quando da cassação do presidente Fernando Lugo, foram dadas duas horas aos advogados para conhecerem os documentos, a acusação e produzirem a defesa, algo materialmente impossível de se fazer. Os advogados foram à sala constitucional da Suprema Corte e obtiveram a seguinte resposta: como o processo de impeachment não é um processo criminal, Lugo não teria os mesmos direitos de defesa de um processo criminal. O impeachment seria semelhante a um processo administrativo. Eu pesquisei qual o processo administrativo mais simples no Paraguai. É a multa de trânsito. No caso de receber uma multa no Paraguai, você tem direito a 5 dias de defesa e de dez dias de recurso. Ou seja, é mais fácil você se defender de uma multa de trânsito lá do que defender um mandato popular.
Naquela época, você imaginou que algo semelhante poderia ocorrer aqui no Brasil?
Não, eu nem imaginava na época que iria acontecer o que aconteceu no Brasil. O que eu observei nestes fenômenos que ocorreram em Honduras e no Paraguai, medidas de exceção produzidas pelo Judiciário que se dão por meio de uma fraude. A fraude é uma ilegalidade com a roupagem de uma coisa legal. Há uma fraude democrática. A título de cumprir a Constituição e de realizar a democracia, o Judiciário e o Parlamento rompem com a Constituição e interrompem o ciclo democrático, suspendendo um direito fundamental da sociedade que é o direito à democracia. Assistimos ao uso do processo judicial, não com a finalidade de aplicar a ordem jurídica e o Direito Penal, mas sim de produzir efeitos políticos. É um processo penal de exceção, que busca combater o inimigo, desumanizando este com um rótulo e suspendendo os seus direitos como pessoa, impedindo que se defenda plenamente.
Então, o que temos no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza, amparado em um sistema de justiça que não pune os crimes cometidos contra os cidadãos. Só se fala de impunidade quando o crime é contra o Estado. E temos também o uso do Judiciário como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Na Argentina, conseguiram derrubar os índices de apoio a presidenta Cristina Kirchner por conta de problemas com o Judiciário. São medidas de exceção no interior de estados democráticos que governam os territórios dos incluídos. Não dá para falar hoje em dia que Lula é um excluído, mas ele representa a imagem dos excluídos na hipótese paranoica das elites.
Há uma conjuntura mais ampla que favorece esse tipo de postura. Ela se aproveita de um conforto histórico, pois, hoje, no mundo inteiro, há um crescimento de uma jurisprudência punitivista. Uma boa parte da esquerda, aliás, embarca nessa onda, sem ter consciência do que está fazendo. É uma jurisprudência fascista, suspensiva dos direitos das pessoas e que acredita no Direito Penal como a solução para todos os problemas, como um substituto das políticas públicas. Essa visão enxerga no Direito Penal uma capacidade de governo. Isso vem ocorrendo praticamente no mundo inteiro. É um retrocesso em relação aos avanços dos últimos duzentos anos no campo dos direitos fundamentais.
Recentemente, um desembargador da Justiça Federal do Rio Grande do Sul justificou atitudes polêmicas e mesmo ilegais do juiz Sérgio Moro dizendo que ele está lidando com uma situação excepcional que também exigem medidas excepcionais. Essa parece ser uma defesa explícita do estado de exceção, não?
Sim. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tomou essa posição, citando uma decisão do Supremo que tratava de medidas de exceção e que cita Agamben. Na verdade, cita um trecho que Agamben que descreve o pensamento de Carl Schmitt, como se ele estivesse endossando tal pensamento, quando, na verdade, está criticando. O TRF4 fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Ou seja, uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate ao inimigo. O que parece estar ocorrendo na América Latina é uma substituição da farda pela toga. Esse estamento representado pelas carreiras públicas que compõem o sistema de justiça traz um pouco daquela imagem que os militares tinham, uma imagem de pureza, de ausência das impurezas da política, esse tipo de visão de mundo que habita a mentalidade daquilo que Hannah Arendt chamava de ralé.
Esse conceito de ralé é interessante. Em seu livro “As origens do totalitarismo”, Hannah Arendt tenta entender como o nazismo acabou tomando conta da Alemanha. Ela cria o conceito de ralé como substituto de povo. Um povo não é um mero aglomerado de pessoas em um regime democrático, mas sim um monte de gente que partilha uma certa visão de sociedade e certos valores. Em um regime democrático, a sociedade é um ente dividido, frágil e conflitivo, que resolve seus conflitos por mecanismos pacíficos, por meio da Política e do Direito. Já a ralé se reúne em torno de um líder ou de um estamento carismático e tem uma noção de dever ser, uma noção corretiva da sociedade. A sociedade deve ser pura e unida, não deve ter conflitos, mas sim ordem. Acho que no Brasil, hoje, o sistema de justiça ocupa essa função do líder carismático, chamando a ralé às ruas. A ralé clama por essa figura.
No caso brasileiro, essa ralé está representada na classe média?
Hannah Arendt não trata a ralé como um conceito econômico, como uma categoria restrita a uma classe social. Na verdade, a ralé é composta por gente de todos os setores sociais, ricos, pobres e classe média. Aqui no Brasil, provavelmente, há uma maior presença das classes médias, mas ela não exclui a presença de pobres e de ricos. Ela parece povo, mas não é. Tem uma visão de mundo autoritária, incompatível com a democracia. É uma base social essencial para existir a exceção. Uma característica dos estados de exceção no século XX é que eles sempre tiveram uma forte base social, como foram os casos do nazismo, do fascismo e de várias ditaduras latino-americanas.
No Brasil, essa ralé quer o Judiciário não como produtor de justiça ou aplicador de direitos, mas sim como combatente do crime e fonte da ordem. Essa vontade cria o ambiente para o surgimento de juízes que agem como promotores e para a violação de direitos fundamentais.
Como você definiria a atuação do juiz Sérgio Moro?
Acho que a crítica não deve ser feita individualmente a ele. Nós temos uma jurisprudência punitivista, que ocorre no mundo inteiro. É uma jurisprudência fascista que tem como paradigma o estado de exceção e o campo de concentração, não a pólis. Na América Latina, essa jurisprudência passou a desempenhar uma função predominantemente política, muito além da esfera judicial, uma verdadeira governança social, influenciando a economia e todos os ambientes da vida. Moro é um dos agentes desse processo. A maioria do Judiciário e do Ministério Público adere a essa visão. Acham que Direito Penal é uma forma de política pública, uma forma de governar a sociedade, o que é um equívoco.
Na sua opinião, esse espírito punitivista já estava presente na Constituinte que deu origem à Constituição de 1988?
Esse é um processo complexo. Na década de 1980, nós tivemos o surgimento de uma esquerda punitivista na América Latina. Era uma esquerda que tinha sido afastada do poder e do processo político democrático. Quando retorna a esse processo, vem com uma visão ingênua e também influenciada por uma linhagem de pensamento autoritária que, na minha opinião, tomou conta da esquerda no século XX. Essa esquerda entendia o tema dos direitos humanos como uma agenda burguesa e não como uma conquista da humanidade. Isso levou a esquerda a aderir a certos modelos punitivistas. Nós tivemos um exemplo disso aqui no Rio Grande do Sul, há alguns dias, quando uma liderança do PSOL enalteceu a Lava Jato. A defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais exige a construção de uma subjetividade especial. Você tem que aprender a defender os direitos humanos do teu inimigo. São os direitos dele que é preciso defender, mais do que tudo. Defender os direitos do amigo é fácil. Parte significativa da esquerda ainda resiste a aderir a essa visão. Na Venezuela, por exemplo, o uso do sistema de justiça para aplicar medidas de exceção em processos judiciais é intenso. Temos um sistema de justiça usado para perseguir determinados agentes políticos.
Na verdade, esse debate sobre a exceção questiona tanto a direita como a esquerda, ou uma parte desta ao menos. A crítica ao estado de exceção é uma reflexão de esquerda, sem dúvida, mas ela traz uma carga de reflexão para uma parte significativa da esquerda também que ainda não consegue ver os direitos humanos como uma conquista humana e não da burguesia.
Nós tivemos na semana que passou a prisão de Eduardo Cunha, que tem o potencial de aumentar a instabilidade do governo Temer e do sistema político brasileiro como um todo. Qual o cenário de futuro que vislumbra, considerando o atual estágio da conjuntura?
É difícil fazer previsões no atual cenário. Agamben diz que, na exceção, o paradigma da pólis desaparece e surge o paradigma do campo de concentração. Não é que as pessoas estejam vivendo em um campo de concentração, se bem que se considerarmos as cadeias brasileiras a diferença não é tão brutal assim. A ideia que ele passar aqui é que, no modelo do campo de concentração, as pessoas estão desprovidas de qualquer segurança jurídica, não tem sequer nome, sendo identificadas por um número e estão sujeitas à imprevisibilidade constante quanto à própria existência. A característica da exceção é ser imprevisível. Você pode fazer tentativas de previsão, mas são apenas tentativas.
Eu creio que saímos de uma situação na sociedade brasileira onde certos crimes não eram punidos e hoje a sua punição é usada como justificativa para realizar operações políticas, indo muito além da atividade de punir crimes. Até esse modelo se esgotar, a tendência dele é se expandir, atingindo a vida de muito mais gente do que está posto hoje. A questão não é o Lula só, mas sim o que vem depois do Lula. Nós teremos um processo penal de exceção. Isso vai virar um hábito na sociedade brasileira. Já está sendo construída legislação para isso como as tais propostas contra a corrupção. Parte da esquerda não deve ter a ilusão de que, tratando os ricos com a exceção, isso vai de alguma forma beneficiar os pobres. Defender isso é defender a universalização da injustiça. Ao invés de universalizar os direitos fundamentais, estamos universalizando a injustiça que atinge a população pobre. Isso só piora a situação do pobre que vai enfrentar um tratamento ainda mais punitivista e violento.
A grande ilusão da direita é achar que do autoritarismo extremo vem a ordem. A história mostra que do autoritarismo extremo vem o caos. Creio que só esses elementos de caos, que o autoritarismo traz, é que vão fazê-lo ceder. Na hora em que a sociedade sentir os elementos caóticos que vão surgir na vida econômica, política e social, ela vai começar a reagir. Mas até isso ocorrer, creio que haverá um movimento expansivo da exceção.
O que achou das justificativas para a prisão de Eduardo Cunha?
Muito fracas. Os argumentos estão baseados em condutas que ele teria supostamente adotado no passado. Mas a característica dessa visão punitivista é banalizar a prisão preventiva. Nós temos a quarta maior população aprisionada do mundo, com pouco mais de 600 mil prisioneiros. Destes, mais de 40% estão presos sem sentença de primeiro grau. Como Cunha e outros, estão presos preventivamente com o agravante que muitos deles não têm sequer direito de defesa.
Essa onda punitivista começou a ganhar força na década de 70 com o discurso de Nixon, de combate às drogas e outras questões. Na década de 80, os Estados Unidos começaram a implementar uma política de encarceramento em massa. Em uma década, o país saltou de duzentos e poucos mil aprisionados para mais de dois milhões. No começo, essa política tinha como alvos centrais os negros e os latino-americanos. Surgiram negócios em torno disso com a privatização de presídios. Com o 11 de setembro, esse processo se politiza e torna-se política de exceção. Com o atentado contra as torres gêmeas essa política punitivista sofreu uma incrível expansão, chegando aqui no Brasil de uma forma torta, transformando-se em uma força de organização política e de governança social.
No Brasil, essa jurisprudência punitivista foi tomando conta do nosso Judiciário já há algum tempo, de uma forma silenciosa e sem debate. Foi acontecendo. A partir do caso do “mensalão”, ela adquiriu um papel político e visibilidade. O combate que quem defende os direitos humanos deve fazer não é contra a figura do Moro, mas sim contra uma onda autoritária que tem o estado de exceção como paradigma e que tem tomado conta a jurisprudência mundial. Os países que estão convivendo há mais tempo com isso já estão refletindo. Clinton aprovou a lei que deu mais base para o encarceramento em massa. Hoje, ele se arrepende disso e reconhece que errou, assinalando que o custo desse encarceramento para a sociedade não compensa.
Essa visão punitivista é hegemônica também dentro do STF?
Pedro Serrano: Não era. Se pegarmos a história pessoal da maioria dos ministros, veremos que eram garantistas e não punitivistas. A mídia, que tem um papel fundamental na formação da ralé, tem grande responsabilidade pela mudança que ocorreu no STF e levou vários ministros a reverem suas posições. Faz parte dessa onda punitivista um certo macarthismo social e isso acaba atingindo os juízes também.
Na sua avaliação, qual a capacidade de resistência social a essa onda conservadora punitivista?
Estou num momento muito caído em relação a isso. Quando eu escrevi o livro, que é produto de uma tese de pós-doutorado que apresentei em Lisboa, eu achava que a sociedade brasileira era mais complexa que a de Honduras e Paraguai e que aqui a resistência democrática seria mais forte. Não foi. A minha visão hoje é meio pessimista, mas talvez se deva a essa expectativa que eu tinha e não foi atendida. Hoje vemos a retomada do poder pelas elites em todos os ambientes sociais.
Qual sua opinião sobre as dez medidas contra a corrupção que estão sendo propostas pelo Ministério Público Federal?
Há uma pequena parte dessa proposta que é boa e tem coisas úteis. Mas a maioria delas é degradante da condição humana. O criminalista Alberto Toron disse que elas representam um retorno ao Estado Novo. É mais ou menos isso. É o retorno a um Estado autoritário no âmbito da justiça penal, algo incompatível com a democracia e com o Estado democrático de direito. Não se acaba com a corrupção através de lei penal. Corrupção é macrocriminalidade e isso não pode ser combatido só com Direito Penal. Macrocriminalidade é um processo complexo que se combate com política pública e com mudança cultural.
Não. Era um interesse mais teórico mesmo relacionado a uma leitura que Agamben e Benjamin fazem do conceito de exceção a partir da obra de Carl Schmitt. Com o surgimento do Estado Moderno, após a Idade Média, e da centralização do poder político no Estado, surge com força o conceito de soberania. Jean Bodin foi o primeiro autor a tratar isso de forma mais articulada e consistente, razão pela qual, muitos o consideram o fundador da ciência política. Bodin entende a soberania como um poder absoluto dos reis, que estabelece uma relação de servidão entre Estado e pessoa, com caráter eterno. A partir das revoluções Francesa e Americana ocorre a secularização do conceito de pessoa. Até então, ela era revestida de um caráter teológico, onde afirmava-se que todos somos filhos do mesmo Pai e, por isso, dotados de uma certa igualdade. As revoluções burguesas secularizam essa noção, trazendo para cada ser humano, pelo simples fato de ser humano, certa proteção jurídico-política, um conjunto de direitos mínimos reconhecidos pelo simples fato de alguém ser humano.
O pensamento autoritário, pré-iluminista, não deixa de existir por conta disso e passa a propor outra forma de soberania absoluta, que consiste em dizer mais ou menos o seguinte: em épocas de paz e tranquilidade, é correto ter esse sistema de direitos como forma de governança social, mas, quando há a ameaça de um inimigo, ou um cataclismo natural, pode ser necessário afastar o Direito para garantir a sobrevivência do Estado e da sociedade. A Constituição de Weimar, de 1919, chamava isso de estado de exceção. Até então, esse tema era pensado principalmente no âmbito da guerra, do conflito entre estados. O inimigo era, fundamentalmente, outro Estado que poderia atacar o meu Estado. Esse elemento está presente em todas as constituições contemporâneas, inclusive a brasileira que prevê estado de sítio e estado de defesa.
Carl Schmitt trouxe essa noção do regime jurídico da guerra para o plano interno, para a relação entre Estado e pessoa, criando essa figura da soberania absoluto a título de atender uma demanda de segurança da sociedade. O Estado nazista acaba se tornando o grande paradigma desse modelo. Hitler assumiu o poder em 1933. Três meses depois, ocorre o incêndio do Reichstag. Hitler acusa os comunistas de ter provocado o incêndio e, para combater esse inimigo, declara o estado de exceção, suspendendo os direitos. É interessante notar que, durante a ditadura hitlerista, a Constituição de Weimar não deixou de vigir. Hitler não negou a Constituição. Ele simplesmente suspendeu seus direitos fundamentais.
Isso foi feito por meio de qual instrumento?
Por meio de um ato legal, uma espécie de decreto, aprovado pelo Parlamento. Isso fornece certo paradigma para o que vão ser as ditaduras no século XX. Elas serão governos de exceção, ou seja, ocuparão o poder com uma estrutura de soberania absoluta, numa relação de servidão com a população em geral, suspendendo os direitos de todos, a título de combater o inimigo. Isso foi feito sempre acompanhado do discurso da provisoriedade. A ditadura brasileira e outras ditaduras latino-americanas apresentam, todas elas, esse discurso. Segundo ele, a ditadura duraria pouco tempo, até que o inimigo fosse derrotado. Depois disso, retornaria a normalidade democrática.
Nestes governos de exceção, ocorre a suspensão de direitos, em algum nível, de toda a sociedade. O direito à livre expressão nas ditaduras latino-americanas foi suspenso de plano para toda a sociedade. Se alguém fosse identificado como inimigo, passava a ter o seu direito à integridade física e à própria vida suspenso. O inimigo, neste caso, não era identificado com nenhuma etnia ou num grupo social específico. O comunista podia ser branco, negro, pobre ou rico.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, ganhou força a ideia de que era preciso ter um discurso universal democrático. A esquerda passou a adotar a democracia como um valor estratégico e a direita conservadora também passou a ter um discurso democrático. Segundo a linha de pensamento desenvolvida por Agamben, a partir daí, ao invés de termos governos de exceção, passamos a ter medidas de exceção no interior da democracia. Um exemplo disso é o Patriot Act, aprovado nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. É uma lei que autoriza o uso da tortura, que suspende, portanto, todo o direito à integridade física, para combater um inimigo muito bem localizado numa etnia e numa religião: a muçulmana. A sociedade como um todo manteve o uso de seus direitos. Em um primeiro momento, a medida de exceção atingiu mais especificamente um grupo da sociedade. Depois passou a atingir outros setores também. O mesmo se deu com as leis antiterroristas na Europa.
Então, no interior de regimes democráticos ocidentais passaram a ocorrer medidas de exceção. Aqui na América Latina, a conclusão a que cheguei a partir da pesquisa que realizei em Honduras, Paraguai e na Venezuela é que o agente da exceção – aquele que a sociedade, ou aquilo que chamo de ralé, atribui a função de instaurar a exceção – é o sistema de justiça, ou direta ou indiretamente apoiando alguma medida do parlamento. Essas medidas de exceção têm sido produzidas em dois sentidos: interromper a democracia em alguns países e, em outros, manter um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza.
Isso faz com que tenhamos um estado de exceção permanente, vivendo em conjunto com o estado democrático de direito, que governa os territórios ocupados pela pobreza através de, no caso brasileiro, uma força de ocupação territorial que é a PM. A PM não é uma polícia. Ela é armada e estruturada como uma força de ocupação territorial. Você vai em qualquer região de periferia de uma grande cidade e tem a sensação de estar em um território ocupado onde não se pode mais circular em determinados horários e onde há restrições ao livre pensamento em determinadas situações. Se você é suspeito, pode ser torturado e morto. Em resumo, é um território onde toda a população que vive nele está sujeita a uma exceção permanente.
Agora, mesmo nos territórios governados pelo Estado de Direito, o que tem se observado na América Latina é a produção de medidas de exceção para perseguir oponentes políticos, o que se aplica também a Venezuela.
Na sua avaliação, esse é um fenômeno novo ou é a expressão de uma tendência mais antiga na América Latina? A relação do Judiciário brasileiro com o golpe de 1964 não guarda semelhança com o que estamos ver acontecer agora?
A figura da medida de exceção é antiga, não só na América Latina, como na história humana. A presença desse tipo de medidas em regimes democráticos não é nova. O que ocorre hoje é que ela passa a ser estruturante, passa a ser um modo para produzir autoritarismos na democracia. O Judiciário sempre teve um papel conservador, exercendo uma certa tutela dos interesses das elites em praticamente todos os países do mundo. O que é interessante, no caso da América Latina, é que ele passa a ter um papel novo na sua história, assumindo a condição de uma espécie de poder moderador, um controlador da democracia para garantir que ela não extravase seus limites. Esse tipo de mecanismo de controle sempre existiu na história humana.
A Constituição não nasce com a ideia que temos dela hoje, como um documento que traz o que há de melhor numa sociedade estabelecido na forma de direitos. As constituições americana e francesa foram formas de controle dos avanços da revolução. Logo que ocorreu a independência dos Estados Unidos, houve a produção de legislações em seus estados membros, antigas colônias, em benefício de pequenos produtores, pequenos agricultores, devedores. A elite americana entrou em pânico e produz uma Constituição pra conter esse ímpeto e centralizar mais o poder. Na França foi pior ainda. Só podia votar quem tivesse patrimônio ou renda. Acho que é por isso que Marx vai falar na democracia burguesa. Era isso mesmo. A classe trabalhadora não votava.
Hoje nós temos a introdução de algumas medidas concretas como forma de contenção da democracia na América Latina, amparadas pelo Judiciário ou praticadas por ele. Em Honduras, em 2009, a decisão de afastar o presidente Manuel Zelaya foi do Judiciário. O presidente foi afastado do cargo por uma ordem judicial, mas essa ordem foi executada pelo Exército e não pela Polícia como deveria ser. Como se tratava de uma ordem liminar, eles deveria ter apresentado o preso ao juiz. Ao invés disso, as forças armadas expulsaram Zelaya do país, contrariando um dispositivo expresso da Constituição que proíbe a expulsão de hondurenhos do país e impedindo o direito de defesa dele. Essas medidas são tão agressivas à Constituição que, depois que o mandato de Zelaya acaba, a Suprema Corte reconhece a ilegalidade e anula aquela ordem. Mas aí já tinha terminado o mandato.
No Paraguai, em 2012, a situação chega a ser pior. Quando da cassação do presidente Fernando Lugo, foram dadas duas horas aos advogados para conhecerem os documentos, a acusação e produzirem a defesa, algo materialmente impossível de se fazer. Os advogados foram à sala constitucional da Suprema Corte e obtiveram a seguinte resposta: como o processo de impeachment não é um processo criminal, Lugo não teria os mesmos direitos de defesa de um processo criminal. O impeachment seria semelhante a um processo administrativo. Eu pesquisei qual o processo administrativo mais simples no Paraguai. É a multa de trânsito. No caso de receber uma multa no Paraguai, você tem direito a 5 dias de defesa e de dez dias de recurso. Ou seja, é mais fácil você se defender de uma multa de trânsito lá do que defender um mandato popular.
Naquela época, você imaginou que algo semelhante poderia ocorrer aqui no Brasil?
Não, eu nem imaginava na época que iria acontecer o que aconteceu no Brasil. O que eu observei nestes fenômenos que ocorreram em Honduras e no Paraguai, medidas de exceção produzidas pelo Judiciário que se dão por meio de uma fraude. A fraude é uma ilegalidade com a roupagem de uma coisa legal. Há uma fraude democrática. A título de cumprir a Constituição e de realizar a democracia, o Judiciário e o Parlamento rompem com a Constituição e interrompem o ciclo democrático, suspendendo um direito fundamental da sociedade que é o direito à democracia. Assistimos ao uso do processo judicial, não com a finalidade de aplicar a ordem jurídica e o Direito Penal, mas sim de produzir efeitos políticos. É um processo penal de exceção, que busca combater o inimigo, desumanizando este com um rótulo e suspendendo os seus direitos como pessoa, impedindo que se defenda plenamente.
Então, o que temos no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza, amparado em um sistema de justiça que não pune os crimes cometidos contra os cidadãos. Só se fala de impunidade quando o crime é contra o Estado. E temos também o uso do Judiciário como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Na Argentina, conseguiram derrubar os índices de apoio a presidenta Cristina Kirchner por conta de problemas com o Judiciário. São medidas de exceção no interior de estados democráticos que governam os territórios dos incluídos. Não dá para falar hoje em dia que Lula é um excluído, mas ele representa a imagem dos excluídos na hipótese paranoica das elites.
Há uma conjuntura mais ampla que favorece esse tipo de postura. Ela se aproveita de um conforto histórico, pois, hoje, no mundo inteiro, há um crescimento de uma jurisprudência punitivista. Uma boa parte da esquerda, aliás, embarca nessa onda, sem ter consciência do que está fazendo. É uma jurisprudência fascista, suspensiva dos direitos das pessoas e que acredita no Direito Penal como a solução para todos os problemas, como um substituto das políticas públicas. Essa visão enxerga no Direito Penal uma capacidade de governo. Isso vem ocorrendo praticamente no mundo inteiro. É um retrocesso em relação aos avanços dos últimos duzentos anos no campo dos direitos fundamentais.
Recentemente, um desembargador da Justiça Federal do Rio Grande do Sul justificou atitudes polêmicas e mesmo ilegais do juiz Sérgio Moro dizendo que ele está lidando com uma situação excepcional que também exigem medidas excepcionais. Essa parece ser uma defesa explícita do estado de exceção, não?
Sim. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tomou essa posição, citando uma decisão do Supremo que tratava de medidas de exceção e que cita Agamben. Na verdade, cita um trecho que Agamben que descreve o pensamento de Carl Schmitt, como se ele estivesse endossando tal pensamento, quando, na verdade, está criticando. O TRF4 fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Ou seja, uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate ao inimigo. O que parece estar ocorrendo na América Latina é uma substituição da farda pela toga. Esse estamento representado pelas carreiras públicas que compõem o sistema de justiça traz um pouco daquela imagem que os militares tinham, uma imagem de pureza, de ausência das impurezas da política, esse tipo de visão de mundo que habita a mentalidade daquilo que Hannah Arendt chamava de ralé.
Esse conceito de ralé é interessante. Em seu livro “As origens do totalitarismo”, Hannah Arendt tenta entender como o nazismo acabou tomando conta da Alemanha. Ela cria o conceito de ralé como substituto de povo. Um povo não é um mero aglomerado de pessoas em um regime democrático, mas sim um monte de gente que partilha uma certa visão de sociedade e certos valores. Em um regime democrático, a sociedade é um ente dividido, frágil e conflitivo, que resolve seus conflitos por mecanismos pacíficos, por meio da Política e do Direito. Já a ralé se reúne em torno de um líder ou de um estamento carismático e tem uma noção de dever ser, uma noção corretiva da sociedade. A sociedade deve ser pura e unida, não deve ter conflitos, mas sim ordem. Acho que no Brasil, hoje, o sistema de justiça ocupa essa função do líder carismático, chamando a ralé às ruas. A ralé clama por essa figura.
No caso brasileiro, essa ralé está representada na classe média?
Hannah Arendt não trata a ralé como um conceito econômico, como uma categoria restrita a uma classe social. Na verdade, a ralé é composta por gente de todos os setores sociais, ricos, pobres e classe média. Aqui no Brasil, provavelmente, há uma maior presença das classes médias, mas ela não exclui a presença de pobres e de ricos. Ela parece povo, mas não é. Tem uma visão de mundo autoritária, incompatível com a democracia. É uma base social essencial para existir a exceção. Uma característica dos estados de exceção no século XX é que eles sempre tiveram uma forte base social, como foram os casos do nazismo, do fascismo e de várias ditaduras latino-americanas.
No Brasil, essa ralé quer o Judiciário não como produtor de justiça ou aplicador de direitos, mas sim como combatente do crime e fonte da ordem. Essa vontade cria o ambiente para o surgimento de juízes que agem como promotores e para a violação de direitos fundamentais.
Como você definiria a atuação do juiz Sérgio Moro?
Acho que a crítica não deve ser feita individualmente a ele. Nós temos uma jurisprudência punitivista, que ocorre no mundo inteiro. É uma jurisprudência fascista que tem como paradigma o estado de exceção e o campo de concentração, não a pólis. Na América Latina, essa jurisprudência passou a desempenhar uma função predominantemente política, muito além da esfera judicial, uma verdadeira governança social, influenciando a economia e todos os ambientes da vida. Moro é um dos agentes desse processo. A maioria do Judiciário e do Ministério Público adere a essa visão. Acham que Direito Penal é uma forma de política pública, uma forma de governar a sociedade, o que é um equívoco.
Na sua opinião, esse espírito punitivista já estava presente na Constituinte que deu origem à Constituição de 1988?
Esse é um processo complexo. Na década de 1980, nós tivemos o surgimento de uma esquerda punitivista na América Latina. Era uma esquerda que tinha sido afastada do poder e do processo político democrático. Quando retorna a esse processo, vem com uma visão ingênua e também influenciada por uma linhagem de pensamento autoritária que, na minha opinião, tomou conta da esquerda no século XX. Essa esquerda entendia o tema dos direitos humanos como uma agenda burguesa e não como uma conquista da humanidade. Isso levou a esquerda a aderir a certos modelos punitivistas. Nós tivemos um exemplo disso aqui no Rio Grande do Sul, há alguns dias, quando uma liderança do PSOL enalteceu a Lava Jato. A defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais exige a construção de uma subjetividade especial. Você tem que aprender a defender os direitos humanos do teu inimigo. São os direitos dele que é preciso defender, mais do que tudo. Defender os direitos do amigo é fácil. Parte significativa da esquerda ainda resiste a aderir a essa visão. Na Venezuela, por exemplo, o uso do sistema de justiça para aplicar medidas de exceção em processos judiciais é intenso. Temos um sistema de justiça usado para perseguir determinados agentes políticos.
Na verdade, esse debate sobre a exceção questiona tanto a direita como a esquerda, ou uma parte desta ao menos. A crítica ao estado de exceção é uma reflexão de esquerda, sem dúvida, mas ela traz uma carga de reflexão para uma parte significativa da esquerda também que ainda não consegue ver os direitos humanos como uma conquista humana e não da burguesia.
Nós tivemos na semana que passou a prisão de Eduardo Cunha, que tem o potencial de aumentar a instabilidade do governo Temer e do sistema político brasileiro como um todo. Qual o cenário de futuro que vislumbra, considerando o atual estágio da conjuntura?
É difícil fazer previsões no atual cenário. Agamben diz que, na exceção, o paradigma da pólis desaparece e surge o paradigma do campo de concentração. Não é que as pessoas estejam vivendo em um campo de concentração, se bem que se considerarmos as cadeias brasileiras a diferença não é tão brutal assim. A ideia que ele passar aqui é que, no modelo do campo de concentração, as pessoas estão desprovidas de qualquer segurança jurídica, não tem sequer nome, sendo identificadas por um número e estão sujeitas à imprevisibilidade constante quanto à própria existência. A característica da exceção é ser imprevisível. Você pode fazer tentativas de previsão, mas são apenas tentativas.
Eu creio que saímos de uma situação na sociedade brasileira onde certos crimes não eram punidos e hoje a sua punição é usada como justificativa para realizar operações políticas, indo muito além da atividade de punir crimes. Até esse modelo se esgotar, a tendência dele é se expandir, atingindo a vida de muito mais gente do que está posto hoje. A questão não é o Lula só, mas sim o que vem depois do Lula. Nós teremos um processo penal de exceção. Isso vai virar um hábito na sociedade brasileira. Já está sendo construída legislação para isso como as tais propostas contra a corrupção. Parte da esquerda não deve ter a ilusão de que, tratando os ricos com a exceção, isso vai de alguma forma beneficiar os pobres. Defender isso é defender a universalização da injustiça. Ao invés de universalizar os direitos fundamentais, estamos universalizando a injustiça que atinge a população pobre. Isso só piora a situação do pobre que vai enfrentar um tratamento ainda mais punitivista e violento.
A grande ilusão da direita é achar que do autoritarismo extremo vem a ordem. A história mostra que do autoritarismo extremo vem o caos. Creio que só esses elementos de caos, que o autoritarismo traz, é que vão fazê-lo ceder. Na hora em que a sociedade sentir os elementos caóticos que vão surgir na vida econômica, política e social, ela vai começar a reagir. Mas até isso ocorrer, creio que haverá um movimento expansivo da exceção.
O que achou das justificativas para a prisão de Eduardo Cunha?
Muito fracas. Os argumentos estão baseados em condutas que ele teria supostamente adotado no passado. Mas a característica dessa visão punitivista é banalizar a prisão preventiva. Nós temos a quarta maior população aprisionada do mundo, com pouco mais de 600 mil prisioneiros. Destes, mais de 40% estão presos sem sentença de primeiro grau. Como Cunha e outros, estão presos preventivamente com o agravante que muitos deles não têm sequer direito de defesa.
Essa onda punitivista começou a ganhar força na década de 70 com o discurso de Nixon, de combate às drogas e outras questões. Na década de 80, os Estados Unidos começaram a implementar uma política de encarceramento em massa. Em uma década, o país saltou de duzentos e poucos mil aprisionados para mais de dois milhões. No começo, essa política tinha como alvos centrais os negros e os latino-americanos. Surgiram negócios em torno disso com a privatização de presídios. Com o 11 de setembro, esse processo se politiza e torna-se política de exceção. Com o atentado contra as torres gêmeas essa política punitivista sofreu uma incrível expansão, chegando aqui no Brasil de uma forma torta, transformando-se em uma força de organização política e de governança social.
No Brasil, essa jurisprudência punitivista foi tomando conta do nosso Judiciário já há algum tempo, de uma forma silenciosa e sem debate. Foi acontecendo. A partir do caso do “mensalão”, ela adquiriu um papel político e visibilidade. O combate que quem defende os direitos humanos deve fazer não é contra a figura do Moro, mas sim contra uma onda autoritária que tem o estado de exceção como paradigma e que tem tomado conta a jurisprudência mundial. Os países que estão convivendo há mais tempo com isso já estão refletindo. Clinton aprovou a lei que deu mais base para o encarceramento em massa. Hoje, ele se arrepende disso e reconhece que errou, assinalando que o custo desse encarceramento para a sociedade não compensa.
Essa visão punitivista é hegemônica também dentro do STF?
Pedro Serrano: Não era. Se pegarmos a história pessoal da maioria dos ministros, veremos que eram garantistas e não punitivistas. A mídia, que tem um papel fundamental na formação da ralé, tem grande responsabilidade pela mudança que ocorreu no STF e levou vários ministros a reverem suas posições. Faz parte dessa onda punitivista um certo macarthismo social e isso acaba atingindo os juízes também.
Na sua avaliação, qual a capacidade de resistência social a essa onda conservadora punitivista?
Estou num momento muito caído em relação a isso. Quando eu escrevi o livro, que é produto de uma tese de pós-doutorado que apresentei em Lisboa, eu achava que a sociedade brasileira era mais complexa que a de Honduras e Paraguai e que aqui a resistência democrática seria mais forte. Não foi. A minha visão hoje é meio pessimista, mas talvez se deva a essa expectativa que eu tinha e não foi atendida. Hoje vemos a retomada do poder pelas elites em todos os ambientes sociais.
Qual sua opinião sobre as dez medidas contra a corrupção que estão sendo propostas pelo Ministério Público Federal?
Há uma pequena parte dessa proposta que é boa e tem coisas úteis. Mas a maioria delas é degradante da condição humana. O criminalista Alberto Toron disse que elas representam um retorno ao Estado Novo. É mais ou menos isso. É o retorno a um Estado autoritário no âmbito da justiça penal, algo incompatível com a democracia e com o Estado democrático de direito. Não se acaba com a corrupção através de lei penal. Corrupção é macrocriminalidade e isso não pode ser combatido só com Direito Penal. Macrocriminalidade é um processo complexo que se combate com política pública e com mudança cultural.
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