Racionais MCs: Quatro Pretos Mais Perigosos do Brasil

Da revista Rolling Stones

Sem lançar disco há 11 anos, com opiniões contraditórias e quebrando as regras do jogo, o Racionais MC’s permanece como a única voz da música a mobilizar um exército de brasileiros
por ANDRÉ CARAMANTE
Olhar de Pedro Paulo Soares Pereira está fixado no horizonte do Capão Redondo, periferia sul de São Paulo. Apesar de ser primavera, o céu cinza-chumbo dá o tom àquela tarde fria de outubro. Sentado em uma cadeira plástica, com um caderno surrado apoiado na perna e contra o qual desliza o lápis mal apontado, ele está na varanda da Casa Azul, o porto seguro dele na Favela da Godoy. Ali, uma rede de proteção – invisível para quem não é da área –, formada por moradores e amigos, faz a triagem de quem, quando e como pode ter acesso a Pedro Paulo, chamado pela maioria de Brown e, pelas crianças, de “tio Brau”. Barulhos vindos da rua invadem a Blue House – como o anfitrião chama intimamente a propriedade comprada e reformada por ele com o dinheiro recebido de uma multinacional fabricante de material esportivo para gravar uma versão de “Umbabarauma” ao lado de Jorge Ben Jor – e se misturam a uma base sonora vertiginosa. Os graves pesados, interpostos com as risadas sinistras de um palhaço, partem de um computador ligado a duas pequenas caixas do modesto estúdio. Quando digo que, pelo reconhecimento do meio musical, ele poderia criar músicas no estúdio que quisesse, Pedro Paulo, 43 anos, retruca: “Estou onde quero estar, chapa”.
Duas semanas antes, ele estava no palco de uma casa noturna “de playboys”, a Royal – com Kleber Geraldo Lelis Simões, 44, Paulo Eduardo Salvador, 43, e Adivaldo Pereira Alves, 43, respectivamente DJ KL Jay, Ice Blue e Edi Rock –, cantando músicas que protestam contra tudo o que se via ali. Eles, “os quatro pretos mais perigosos do Brasil”, como sempre se autodenominam.
A justificativa veio no curto discurso antes de “1 por Amor 2 por Dinheiro”. “Vamos aos fatos. O que leva um homem a estar na rua domingo à noite? Você devia estar descansando, cara. Só há um motivo que me traz para a rua e um deles é esse aqui, ó”, declarou Brown, antes de KL Jay soltar o ruído de uma caixa registradora. Quando o questionei sobre o show, Brown foi sucinto: “Ele [Marcus Buaiz, dono da boate] não pagou pau pra mim e eu não paguei pau pra ele. Estávamos ali para fazer negócio”.
O fato é que o camisa 10 do Racionais MC’s defende hoje o trabalho do quarteto como um “produto” – para quase qualquer plateia, em quase qualquer lugar. E eles lidam com os riscos disso. “Tem de ter cuidado para não chapar. A Billie Holiday chapou. Fazia show com os brancos a venerando e sabia dos pretos enforcados por aquela plateia que a aplaudia”, divaga KL Jay, para quem o discurso ideológico continua ali, apesar da eficácia duvidosa junto àquele público. “Acho que os convencemos de que estamos certos, mas eles não assumem que estão errados [risos].”
O “show Robin Hood” (“quem tem mais paga um pouco mais para nos ver cantar; que tem menos paga menos ou nada”, diz Brown) foi a mais recente polêmica envolvendo o grupo, mas está longe de ter sido um momento tenso. Em 25 anos, eles pegaram em armas por ideologia, disseram não a uma indústria pré-estabelecida e deram um nó no modelo de sucesso. Há duas décadas, já haviam despertado discussões por terem angariado fãs bem-nascidos com Raio X Brasil (1993), que trazia “Fim de Semana no Parque” e “Homem na Estrada”. Parecem, portanto, suportar tranquilamente uma nova geração de admiradores abastados, um Lobão vociferante ou críticas por Edi Rock ter ido à Globo divulgar o trabalho solo dele.
Ao longo de 2013, fiz marcação cerrada para documentar o trabalho de Ice Blue, KL Jay, Edi Rock e Mano Brown e tentar entender por que o grupo, que não lança um álbum de inéditas há mais de uma década, ainda arrasta grandes públicos, seja na boate Royal, seja em palcos armados em chão de terra batida, como aconteceu no último dia 26, no Jardim Guacuri, extremo sul de São Paulo.
Vem daí a autodenominação dos quatro: o “perigo” está em conseguir mobilizar um gigantesco exército de brasileiros, para quem as letras batem no peito com força e sentimento de legitimidade. Sabe-se lá o que teria acontecido se tivessem participado da recente onda de protestos, dos quais se ausentaram por considerarem tudo muito nebuloso.
“Tem muita gente com muitos interesses aí”, diz Brown. “O que importa o que o Brown acha? A essa altura? Tá na mão do povo.” Para ele, o balanço das manifestações é positivo. “A gente cresceu vendo argentino fazendo panelaço e a gente, Carnaval. Agora, não. Então, é positivo. Deixou dúvidas no ar, mas é positivo.”

http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-86/racionais-mcs-quatro-pretos-mais-perigosos-do-brasil

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