A Mãe - Gorki
“Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir; temos vergonha, porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E muitas vezes, por causa desse embaraço, revoltamo-nos contra os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos de todas as maneiras e feitios, queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.”
Uma obra literária contextualizada na Rússia do início do século XX, inspirada em manifestações reais do primeiro de maio de 1902 e no julgamento dos seus participantes. A revolução de um povo no seio de uma família, transformando a todos com a consciente participação na luta pelos ideais.
A vida da fábrica, o ar pesado de fumaça, a vida cinza... O homem é o retrato da violência do meio. Trabalha, contrai matrimônio, tem filhos, enterra muitos, bebe, é espancado, espanca e morre. Quando o serralheiro Mikhail Vlassov falece, restam a mãe viúva e o filho. Uma relação quase desconhecida: falavam pouco e quase não se viam.
Um dia após o jantar, a mãe pergunta o que o filho lê e surge o primeiro vínculo entre os dois no segredo compartilhado: “Leio livros proibidos. Os livros são proibidos porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operários... São impressos às escondidas e, se os encontram aqui, metem-me na prisão, porque eu quero saber a verdade.”
Próximos, recomeçam a vida familiar em silêncio. A mãe declara seu medo quando o filho começa a receber visitas e a discutir as leituras e as formas de inserir o conhecimento no meio operário. A mãe permanece à margem, analisa as visitas e o que dizem, afeiçoa-se ao grupo... Mas ainda está muito presa aos preconceitos e às verdades religiosas alicerçados em sua existência.
Os panfletos circulam, exortando os operários a se unirem e lutarem por seus direitos. Existem os novos que se entusiasmam; os que ganham bons salários e levam para a administração as folhas, e a maior parte, alquebrada pelo trabalho e pela indiferença, respondem preguiçosamente: “Nada vai mudar, é mesmo impossível.”
Iniciam as buscas em casa, os boatos, as esperas... O filho sabe que o futuro é a prisão. A mãe ironiza a si própria: “Tive medo... até antes de ter medo.”
O filho é preso com a suspeita de que liderava a circulação dos panfletos subversivos. A mãe, amadurecida e transformada com as leituras às escondidas, engaja-se na luta, trabalhando como vendedora de marmitas na fábrica, e continua a distribuição dos panfletos sob o disfarce. A mulher velha se transforma, passa a ocupar um espaço de funções e percepções no grupo. Não é mais apenas a mãe.
O filho é solto e logo inicia os preparativos para o 1º de maio. A manifestação reúne uma multidão compacta e os líderes estimulam os trabalhadores a aderirem ao levante. “Levanta-te, povo trabalhador! A pé, gente com fome e dor!”
A multidão se dispersa diante da “onda cinzenta de soldados”. Muita violência e a prisão dos líderes, entre eles o filho Pavel, encerram a manifestação.
Com a nova prisão de Pavel e a certeza da condenação, a mãe se muda para a casa de um amigo do filho na cidade, um professor primário, e continua o trabalho de distribuição dos panfletos nas zonas rurais. A realidade dos camponeses e dos operários é demonstrada na alienação e no medo. A mãe já não é a esposa violentada pela vida e a senhora com medo do conhecimento do filho, é uma mulher consciente que já tem argumentos próprios.
“A mãe ouvia-o como um sonho; a sua memória desfilava diante dela a longa série de acontecimentos dos últimos anos e, ao recordá-los, via-se a si própria. Outrora a vida havia-lhe parecido externa, longínqua, feita não se sabe por quem, nem por quê; e eis que agora muita coisa nasce perante os seus olhos com a sua contribuição.”
O julgamento do filho é apenas um jogo de cena. As penas já foram estabelecidas nos gabinetes. A deportação – trabalhos forçados. A mãe leva o discurso proferido pelo filho no julgamento para ser impresso e divulgado na tipografia clandestina. Quando ela, incumbida da distribuição, tenta embarcar com a mala cheia de panfletos, percebe que foi apanhada. Sente dúvidas se deve abandonar a mala, mas logo vem a certeza de que seria abandonar as palavras do filho.
É pega, humilhada e espancada. “Não afogarão a verdade num mar de sangue...”
Muitos são os trechos instigantes do romance:
A elaboração da morte de um camarada: “Que quer isso dizer: ele morreu? A minha estima por Iegor, a minha afeição por ele, pelo camarada, a recordação da obra dos seus pensamentos, essa própria obra? Extinguiram-se os sentimentos que ele fez nascer em mim, apagou-se a imagem que me fez dele, de um homem corajoso, honesto? Será que tudo isto morreu? Para mim, isto não morrerá nunca, sei-o bem. Parece-me que nos apressamos demasiado em dizer de um homem: morreu. ‘Estão mortos os lábios dele, mas as suas palavras vivem e viverão eternamente no coração dos vivos!’”
O relato do homem à beira da morte que afirma que sua vida foi mutilada pelo árduo trabalho na fábrica para o patrão comprar um penico de ouro para uma cantora: “Nesse ouro está a minha força, a minha vida. Foi assim que a perdi, um homem matou-me de trabalho para agradar à amante... Comprou-lhe um penico de ouro com meu sangue.”
A perspectiva do perdão: “Como perdoar a quem se atira contra ti como um animal selvagem, quem não reconhece em ti uma alma viva e esmurra o teu rosto? Impossível perdoar. Não por mim, pois suportaria todos os ultrajes se fosse só eu, mas não quero ceder o mínimo aos que empregam a força, não quero que eles aprendam nas minhas costas a espancar os outros.”
Ou a percepção de que apenas a verdade não basta, é necessário tocar a emoção do trabalhador: “Falas bem, sim, mas não tocas o coração, aí está. É no mais fundo do coração que é preciso acender a centelha. Não cativarás as pessoas pela razão. Este sapato é demasiado fino, demasiado pequeno para o pé delas.”
“A Mãe” foi um romance extremamente importante para a consciência da revolução soviética. Lenine, ao ler a obra de Gorki, comentou: “É um livro necessário. Muitos operários participaram no movimento revolucionário de um modo não consciente, espontâneo, e ler A Mãe ser-lhes-á de grande proveito. É um livro muito oportuno.”
Máximo Gorki (1868 a 1936) participou em lugar destacado da revolução de 1905 e, após o malogro desta, escreveu o romance “A mãe” em 1907. Sua atividade literária sempre foi acompanhada de intensa atuação no campo político. Marxista, filiado ao Partido Social Democracia, criou a revista Znanie (O Conhecimento), destinada a estimular vocações jovens.
A vida do grande escritor russo foi marcada pela miséria e pela violência que traçam seus personagens. Órfão de pai aos seis anos, foi morar com o avô que o forçou a “cair no meio do povo para ganhar a vida”. Autodidata, apaixonou-se pelos livros quando trabalhou como copeiro num barco, aos 12 anos, e o cozinheiro transmitiu seu prazer pela leitura e emprestou os livros de sua pequena biblioteca.
Sua vida abrangeu o fim do czarismo e a consolidação do regime soviético. Assumiu cargos importantes no Governo e teve uma morte misteriosa: faleceu inesperadamente quando estava recolhido no hospital para tratamento médico de rotina. Foi sepultado na Praça Vermelha junto aos líderes da Revolução e consagrado como o patrono das letras soviéticas.
O pseudônimo do escritor – Gorki - foi adotado em recordação aos anos de penúria de sua infância mutilada. Gorki em russo significa “amargo”.
O título e a atuação da protagonista no romance ensejam uma crônica especial sobre o papel das mães na construção da história. As mães da Praça de Maio, as mães dos soldados mortos em combate, as mães dos grandes líderes, as mães dos grandes mártires..
A mãe ouvia-o como um sonho; a sua memória desfilava diante dela a longa série de acontecimentos dos últimos anos e, ao recordá-los, via-se a si própria. Outrora a vida havia-lhe parecido externa, longínqua, feita não se sabe por quem, nem por quê; e eis que agora muita coisa nasce perante os seus olhos com a sua contribuição.”
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