Comunismo: O PCdoB e o caminho da luta armada
A complexidade dos fenômenos que se entrelaçaram na reorganização do Partido Comunista do Brasil em 1962 e a definição do caminho a seguir constituem um dos capítulos mais decisivos da história dos comunistas no Brasil. O advento do golpe de 1964 acrescentou mais obstáculos àquela encruzilhada diante da qual era preciso tomar decisões rápidas e ousadas.
Mao Tse-tung recebe João Amazonas e Lincoln Oest
A conclusão é lógica. Ao cunhar o slogan “O Partido do socialismo com a cara do Brasil” para comemorar seus 90 anos, o Partido Comunista do Brasil vincou o traço nacional que o acompanha desde 1922. É uma distinção importante porque, em sua trajetória, os comunistas foram falsamente acusados de pertencerem a uma organização sem raízes no país. Esse argumento foi um dos utilizados nas campanhas da década de 1940 para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassar o registro legal do Partido. Mas o determinante nessa lembrança de que o socialismo precisa ter a cara do Brasil é a compreensão desenvolvida sobre como a teoria marxista deve ser aplicada depois que diferentes modelos se esgotaram, deixando um vazio teórico imediatamente detectado pelas organizações revolucionárias.
O Partido Comunista do Brasil, apesar das suas notórias inclinações para as questões nacionais, ao longo de sua história elaborou teses que transitaram por diferentes modelos de socialismo. Por óbvio, o paradigma soviético, em seus primeiros períodos, foi o mais idealizado. Quando, em 1956, os principais dirigentes do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) propuseram o que diziam ser outro caminho para o socialismo, no Brasil houve o conhecido choque de opiniões que levou à criação do Partido Comunista Brasileiro e à reorganização do Partido Comunista do Brasil — agora um PCB, outro PCdoB.
Acusados pelos líderes do PCUS de serem instrumentos dos chineses na divisão do movimento comunista brasileiro, os dirigentes do PCdoB reagiram dizendo, na resposta a Krushev publicada no jornal A Classe Operária de 1º de agosto de 1963, que “os fatos demonstram sobejamente que a cisão teve como causas principais fatores de ordem interna.” Não era apenas uma proclamação. Até então, o Partido Comunista do Brasil, conhecido pela sigla PCB, mantinha uma unidade estabilizada desde a Conferência da Mantiqueira, realizada em 1943. Havia um núcleo dirigente, cujas figuras centrais, com exceção de Luis Carlos Prestes — além dele, marcaram essa época como dirigentes mais destacados João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda Câmara e Pedro Pomar —, marcharam unidas na reorganização de 1962.
João Amazonas e Lincoln Oes saem pelo mundo
Ao fazer o movimento para se afastar da nova orientação do PCUS, era natural que se aproximassem, no âmbito do movimento comunista internacional, de quem fazia oposição aos soviéticos — os comunistas da China e da Albânia. Mas antes eles deixaram claro que o problema era mais de ordem interna do que externa. O fundo da polêmica apareceu com a virada teórica proclamada pela “Declaração de março” e ratificada nas “Teses para discussão” do V Congresso, que ocorreria em 1960. A apologia do desenvolvimento do capitalismo, sem a distinção entre a burguesia nacional interessada na luta contra o imperialismo e os setores ligados ao capital monopolista de fora e sem valorizar o papel das massas como protagonistas decisivos no processo político, foi o centro do debate.
Com o norte definido pelo programa da reorganização, o PCdoB buscou estabelecer relações externas e não se isolar no cenário mundial. Havia a correta compreensão de que o cenário internacional se refletia de forma marcante na conjuntura interna. Ainda em 1962, João Amazonas e Lincoln Oest — este também dirigente do PCdoB — sairiam pelo mundo, começando pela América Latina, para estabelecer laços de solidariedade. Chegaram à China, onde foram recebidos por Mao Tse-tung. Na volta, relataram que, em muitos países, sentiram o clima hostil pela propagação da versão do novo PCB sobre as divergências entre os comunistas brasileiros.
Outro dirigente que valorizava as relações internacionais era Pedro Pomar. Quando a guerrilha liderada por Fidel Castro triunfou em Cuba, em 1º de janeiro de 1959, ele foi saudar a vitória e ver a experiência de perto. Esteve no país por duas semanas e meia e voltou entusiasmado. Segundo ele, tudo que dizia respeito à Revolução Cubana, a seus problemas e dificuldades, em uma palavra, ao seu destino, interessava profundamente às forças populares e patrióticas do Brasil. Demonstrava a pujança e o crescimento da luta libertadora e democrática na América Latina. Para Pedro Pomar, o exemplo da Revolução Cubana alentava a luta que os comunistas travavam pela emancipação nacional e social do povo brasileiro. A vitória do povo cubano era parte integrante daquela luta dos brasileiros e, como tal, precisava ser defendida.
Visitas de dirigentes do PCdoB a Cuba
O primeiro contato dos cubanos com os comunistas que reorganizariam o Partido Comunista do Brasil ocorreu quando Carlos Danielli, ainda no histórico PCB mas já em processo de afastamento cumprindo “missão” no estado do Espírito Santo, em abril de 1961, chefiou uma delegação de comunistas que visitou a ilha revolucionária. A visita coincidiu com a invasão do país por mercenários organizados pelos Estados Unidos na Praia Girón. Danielli e outros visitantes se apresentaram como voluntários e passaram uma noite de arma na mão, prontos para entrar em ação caso fosse necessário.
Em novembro de 1961, antes da “expulsão” do novo PCB, os comunistas que estavam contestando o rumo imprimido pelos dirigentes eleitos no V Congresso fundaram uma editora, a Edições Futuro, no Rio de Janeiro, que lançou, como primeiro título, a obra A Guerra de Guerrilhas, de Ernesto Che Guevara — a primeira do guerrilheiro famoso publicada no Brasil — prefaciada por Maurício Grabois. No primeiro semestre de 1962, a editora lançou De Moncada à ONU, traduzida por Pedro Pomar, com discursos de Fidel Castro, e a Segunda Declaração de Havana. Pedro Pomar escreveu o prefácio. Em abril de 1962, Grabois e Amazonas também visitaram Cuba e conversaram com Fidel Castro e Che Guevara, e com dirigentes comunistas da Coréia, da Albânia e da China. Pouco tempo depois, em agosto de 1962, Carlos Danielli, acompanhado de outro dirigente do PCdoB, Ângelo Arroyo, voltou ao país.
Para os dirigentes comunistas que reorganizaram o Partido, as relações internacionais sempre foram prioridade. Quando o debate das “Teses” ao V Congresso atingiu altas temperaturas, Pedro Pomar escreveu que era de enorme significação para o curso da política brasileira o exame do caráter da nova época que vivia a humanidade — a questão da guerra ou da paz e outros problemas de princípios. Mas a direção do Partido, segundo ele, subestimava a análise da situação internacional. Em 1963, ele e outro comunista, Consuelo Calado, visitaram a Tchecoslováquia, foram ignorados pelos dirigentes comunistas locais e seguiram para a Albânia e a China, onde foram bem recebidos.
Troca de farpas era aberta
O interesse da China pelo PCdoB, e vice-versa, era crescente. Na crise estabelecida com o XX Congresso do PCUS, em 1956, uma prolífica publicação de documentos mostrou o abismo que se formara entre a China e a União Soviética. Na mesma margem, ficaram o Partido Comunista da China (PCCh), o Partido do Trabalho da Albânia (PTA) e o PCdoB. A reação dos chineses às críticas de Kruschev a Josef Stálin dava bem a medida da distância que separava os dois contendores. Em outubro de 1961, o XXII Congresso do PCUS se prestou a novos ataques ao histórico líder soviético, vigorosamente rebatidos pelo representante chinês, Chou En-lai.
A troca de farpas era aberta. Quando Kruschev subiu à tribuna e começou a criticar em termos violentos a Albânia, Chou En-lai, que também era primeiro-ministro do seu país, retirou-se ostensivamente da sala de debates. Os soviéticos, em um lance teatral, chegaram ao extremo de retirar do túmulo de Lênin os restos mortais de Stálin, enquanto o representante chinês homenageava a sua memória, depositando uma coroa de flores na sepultura.
A produção de documentos, de parte a parte, também crescia vertiginosamente. O dossiê das divergências ia-se avolumando e, em 14 de junho de 1963, ganhou novo e precioso reforço: os comunistas chineses publicaram, em 25 pontos, as suas “proposições a respeito da linha geral do movimento comunista internacional”. O documento apontou as vastas regiões da Ásia, da África e da América Latina como convergentes nas contradições do mundo, onde a dominação imperialista estava mais fraca.
Os comunistas da China denunciavam o “revisionismo soviético” de uma forma que se mostravam continuadores do marxismo-leninismo, ao contrário do grupo de Kruschev. E todas as organizações que se manifestavam nessa linha eram apoiadas pelo PCCh. Um editorial do Diário do Povo de março de 1963 dizia, parafraseando o Manifesto do Partido Comunistade Marx e Engels, que os soviéticos temiam a verdade. “Um espectro ameaça o mundo: o espectro do autêntico marxismo-leninismo, e ele os assusta. Vocês não têm fé no povo, e o povo não tem fé em vocês. Vocês estão divorciados das massas. É por isso que temem a verdade”, cutucou. Em junho do mesmo ano, fracassou o último encontro sino-soviético para tentar a reconciliação e as comportas de toda a documentação acumulada foram abertas. A contenda era acompanhada com lupa pelo PCdoB.
Luta armada desponta no horizonte
Com o golpe de 1964, o acúmulo de experiências internacionais foi um ponto decisivo para a definição do caminho a seguir. Em junho daquele ano, o Comitê Central do PCdoB iniciou o debate sobre a tática de deslocamento do trabalho para o campo. Em agosto, aprovou a resolução divulgada com o título O Golpe de 1964 e seus ensinamentos, avaliando que o ocorrido era resultado dos avanços de um projeto estratégico dos setores mais reacionários internos a serviço do imperialismo norte-americano. Era hora de procurar novas formas de resistência. A luta armada era uma possibilidade que despontava no horizonte.
A direção do PCdoB chegou à conclusão de que para discutir profundamente a forma de enfrentar a ditadura era necessário convocar uma Conferência — a VI, realizada em julho de 1966 em São Paulo. A Conferência debateu e aprovou a linha política, contida no documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. A certa altura do texto, o PCdoB apontou a guerrilha como uma das principais formas de luta contra a ditadura. “A ideia de que é indispensável empunhar armas para libertar o país do atraso e da opressão vem ganhando força”, diz o documento. “A luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”, definiu a Conferência. “As forças armadas populares, inicialmente débeis, crescem e tornam-se fortes e superiores às do adversário. (...) Sendo parte integrante do povo, têm nele a fonte de sua invencibilidade.”
O PCdoB afastara-se de Cuba quando o governo de Fidel Castro optou pelo alinhamento com a União Soviética. Estava estudando as experiências de guerras populares na China e no Vietnã. O estudo da guerra popular no campo passou a ser uma prioridade. Muitos militantes do Partido foram para a China, onde receberam instruções político-militares. As relações políticas com os comunistas chineses e albaneses se estreitaram com sucessivas visitas de dirigentes do PCdoB àqueles países.
Preparar o Partido para grandes lutas
Em fevereiro de 1968, o Comitê Central publicou o documento para estudo denominado Salve a grande vitória da guerra popular, de autoria de Lin Piao, um dos dirigentes da República Popular da China, com a sistematização das experiências política e militar chinesas dos vinte e dois anos da revolução naquele país. Em maio, o Comitê Central aprovou dois documentos. O primeiro, denominado Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina, posicionava-se a favor da China e da Albânia, e contra os Estados Unidos e a União Soviética. No aspecto ideológico, criticou o “fidelismo” e afirmou que “cada povo fará a sua revolução”.
No segundo documento, denominado Preparar o Partido para grandes lutas, o PCdoB, com base nas mobilizações estudantis que tomavam corpo, disse que “o desprendimento e a energia da mocidade, bem orientada, são fatores de radicalização das lutas”. Mas alertava que “as zonas rurais constituirão as vastas áreas de manobra para os destacamentos armados do povo e nestas zonas encontrava-se o maior potencial revolucionário”. Outro texto, com o título A política estudantil do PCdoB, orientou os militantes naquele ano de grandes embates com a ditadura, quando greves e manifestações estudantis desafiaram os golpistas.
No começo de 1969, o PCdoB realizou uma reunião ampliada do Comitê Central na qual aprovou o documento Guerra popular — caminho da luta armada no Brasil, que expôs, “nos aspectos essenciais”, a concepção “da luta armada em que todo o povo brasileiro se empenhará para livrar o país da ditadura e do domínio imperialista norte-americano”, e o Manifesto ao povo, denunciando o banditismo da repressão e conclamando a unidade nacional para “derrubar os opressores”. A reunião também definiu que o PCdoB deveria ter “no interior (sic) o centro de gravidade do seu trabalho” e que “as forças armadas populares terão, durante muito tempo, de se orientar pelos princípios da defensiva estratégica e guiar-se por uma política correta”. E isso queria dizer, entre outras coisas, que o centro de atividades do Partido seria a luta armada – a “quinta tarefa”, como ficou conhecida na ordem de atividades definida pela direção do PCdoB. A primeira era a construção partidária.
Atualidade do pensamento de Lênin
A luta armada começava a sair da pena e a ser preparada efetivamente. Ao longo do ano de 1970, três documentos foram aprovados pelo Comitê Central para marcar a linha política do PCdoB. O primeiro, publicado em abril e escrito por João Amazonas e Maurício Grabois nas selvas do Araguaia, denominado Atualidade do pensamento de Lênin, foi a primeira manifestação pública de divergências com o Partido Comunista da China sobre a tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como uma “nova etapa do marxismo”. O segundo, de julho, com o título Mais audácia na luta contra a ditadura, aprofundava o movimento de revolucionarização iniciado no ano anterior. E o terceiro, de dezembro, intitulado Desenvolver ações mais vigorosas, orientou a militância para o “espírito de oposição das massas” com vista a “acelerar a preparação da luta armada”.
Em setembro de 1971, Pedro Pomar voltou a visitar a Albânia e a China. Na volta, trouxe boas impressões do pequeno país dos Bálcãs, mas o que vira no gigante asiático o deixara encabulado. Encontrou-se com dirigentes comunistas chineses, demorou em longas trocas de opiniões com o primeiro-ministro Chou En-lai e visitou locais onde conversou com o povo. Disse à direção do PCdoB que vira indícios que aumentavam as convicções sobre erros dos chineses apontados no documento Soluções ilusórias, de janeiro de 1971, comentando os acontecimentos no Peru, na Bolívia e no Chile, países que faziam movimentos de distanciamento dos ditames norte-americanos, elogiados pela China. No Peru e na Bolívia, militares tomaram o poder e adotaram medidas nacionalistas. No Chile, vencera as eleições presidenciais o socialista Salvador Allende, que se declarara marxista.
Segundo João Amazonas, o PCdoB olhava com reservas para algumas posições dos comunistas chineses fazia um bom tempo. Quando escrevera, com Maurício Grabois, em plena selva do Araguaia, em abril de 1970, o texto Atualidade do pensamento de Lênin, um dos objetivos era contestar a tentativa chinesa de substituir o leninismo pelo "Pensamento de Mao Tse-tung". “O centenário do nascimento de Vladimir Ilitch Lênin é uma oportunidade para reverenciar a memória deste profundo pensador revolucionário e para ressaltar a grandiosidade de sua obra e a atualidade de sua doutrina”, escreveram. Era uma resposta à tese de que o “Pensamento de Mao Tse-tung” correspondia a uma terceira etapa do marxismo, aprovada no IX Congresso do PCCh, realizado em 1969, ao qual Maurício Grabois, que estava na China, não fora convidado a participar.
Grande atraso para a China
Em junho de 1971, A Classe Operária publicou um extenso documento, com o título “Duzentas milhas de demagogia”, segundo Amazonas uma resposta aberta à tese chinesa sobre o pretenso caráter antiimperialista da posição de governos reacionários e entreguistas que adotavam a fórmula das duzentas milhas de águas territoriais. “Pouco a pouco, vão se tornando claros os verdadeiros objetivos dos militares brasileiros ao estender o mar territorial para duzentas milhas. É cada vez maior o número daqueles que se perguntam: como pretendem defender os interesses nacionais no mar os generais que realizam uma descarada e aberta política de entrega do país aos imperialistas estrangeiros, principalmente norte-americanos? Se não defendem as riquezas existentes na terra, como defenderão os recursos do mar? A atitude dos militares brasileiros não passa, pois, de demagogia barata, de tentativa de engodo para encobrir a verdadeira traição aos interesses de nosso povo”, diz o texto.
Pedro Pomar saiu das conversas com os dirigentes chineses desanimado. Não sentira firmeza no apoio ao PCdoB em sua fase da luta armada e percebeu que o ecletismo era um traço típico das concepções políticas dos comunistas da China. Vira no lugar da dialética uma precária argumentação de que existia um equilíbrio orientando a política externa, proposição que ficaria famosa como a teoria dos três mundos. Os teóricos chineses dessa tese, segundo Pedro Pomar, se especializaram em panegíricos com seus laudatórios trabalhos que tentavam fundamentar uma nova etapa do leninismo. Mas, apesar das turras que se acentuariam nos anos seguintes, o rompimento do PCdoB com o “Pensamento de Mao Tse-tung” só ocorreria abertamente a partir de 1977.
As relações do PCdoB com os comunistas chineses hoje são amistosas. Eles mesmos agora têm posição fechada de que a chamada “Revolução Cultural”, ponto alto da aplicação de uma linha política radicalizada inicialmente apoiada por Mao Tse-tung, foi um grande erro e se constituiu em um grande atraso para a China.
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Editor do Portal Grabois
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